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Boi-almiscarado é exemplo perfeito de adaptação ao clima gelado

Por Natalie Angier

New York Times News Service

21/12/2010 19h13

Entre os diversos mamíferos grandes, carismáticos e visivelmente preparados para o inverno, e que poderiam ser bichos de estimação para quem vive no ártico, os ursos polares são, convenhamos, banais demais; as renas, natalinas demais; os alces se parecem muito com os alvos de prática de tiro de Sarah Palin; e os mamutes, extintos demais.

Há uma escolha melhor, embora pouco conhecida. Segundo biólogos do ártico, o exemplo perfeito de bravura diante dos climas mais gelados é o boi-almiscarado, ou Ovibos moschatus, um bovídeo atarracado e altamente sociável, com chifres pronunciadamente curvados e uma comprida pelagem que lembra os felpudos carpetes de 1975.

O nome popular do Ovibo é parcialmente justificado. Os machos realmente emitem um odor almiscarado na época do acasalamento, mas o animal não é um boi. Também não é um tipo de búfalo, apesar do formato de sua silhueta. Imagina-se que seus parentes vivos mais próximos sejam as cabras e ovelhas _ porém, falando de maneira taxonômica e metafórica, o boi-almiscarado fica num cubículo congelado somente seu. Antes mundialmente abundante nas latitudes ao norte, hoje ele só é encontrado na região ártica da América do Norte, na Groenlândia e em alguns locais da Sibéria e Escandinávia. O boi-almiscarado é uma relíquia do Pleistoceno, a era dos mamíferos gigantes _ o mamute e o mastodonte, o tigre-dentes-de-sabre, as preguiças gigantes, os castores de 200 quilos. Embora a maioria desses brutamontes encapotados tenha desaparecido no fim da era do gelo, há 10 mil anos, o Ovibo persistiu _ com a teimosia do boi que ele não é.

Hoje, cientistas estão buscando entender como, exatamente, o animal conseguiu se manter ao longo de contínuas mudanças de clima e sublevações de habitat. Os pesquisadores enxergam, na história do boi-almiscarado, pistas para direcionar esforços de conservação a outros mamíferos terrestres grandes que hoje estão em risco de extinção. Eles também esperam definir o perfil de uma espécie que consideram magnífica, ao mesmo tempo suave e vigorosa, uma página viva da pré-história cujas complexidades sociais e comportamentais apenas começaram a ser decifradas.

“Há evidências de que eles possuem uma estrutura social como a dos elefantes, e até mesmo um tipo de cultura”, disse Joel Berger, pesquisador da Sociedade de Conservação da Vida Selvagem e professor da Universidade de Montana. Então, por que todos os americanos viajam até a África para ver elefantes, se eles têm essa maravilhosa espécie vivendo em seu quintal?

Numa apresentação na semana passada no Zoológico do Bronx, onde fica instalada a sociedade da vida selvagem, Berger descreveu resultados preliminares de estudos de campo que ele conduziu sobre o boi-almiscarado junto a Layne Adams, da Serviço Geológico dos EUA, e outros colaboradores. Ele falou sobre os desafios de capturar animais para pesá-los e medi-los, verificar seus dentes, coletar amostras de sangue e equipá-los com coleiras de GPS. Um grupo de bois-almiscarados no Monumento Nacional do Cabo Krusenstern, no Alasca, tinha dentes tão ruins e maltratados que pareciam ter vivido unicamente de refrigerantes e chocolates, contou Berger, e os pesquisadores temiam que a população estivesse doente e a caminho da extinção.

Porém, após diversas estações com números diminuindo, os animais de dentes ruins ressurgiram neste ano _ comparando-se, em fecundidade e sobrevivência de ninhadas, a um grupo da Reserva Nacional Bering Land Bridge que tinha dentes exemplares. A causa de sua má dentição segue um mistério, mas o clã de Krusenstern claramente não estava no fim de sua vida.

Apesar de seu célebre passado de colega dos mastodontes, o boi-almiscarado não é um animal gigante. Os machos adultos medem cerca de 1,2 metros e pesam entre 250 e 350 quilos, menos da metade do peso de alguns cavalos. Mesmo assim eles parecem enormes, como resultado de seu incrível casaco de peles de duas camadas. A comprida e desordenada camada exterior, que eles mantêm o ano todo, não só os ajuda contra o frio brutal do inverno no ártico, onde as temperaturas podem ultrapassar os 40 graus negativos, mas também age contra as doenças de insetos do verão ártico.

“No verão, é possível ver o alce trotando pelos campos, tentando escapar de todos os mosquitos”, disse Jim Lawler, biólogo da Rede Ártica do Serviço de Parques Nacionais, em Fairbanks. “Mas o boi-almiscarado simplesmente fica ali parado, com nuvens de mosquitos ao seu redor. É duro penetrar aquela pele”. Para um isolamento adicional, a espécie desenvolve uma segunda camada de pele a cada inverno, um revestimento chamado “qiviut” que seria mais quente que a lã e mais macio que o cashmere. E que gentileza esses animais soltarem esse qiviut na primavera, para uso em echarpes.

Com suas pernas curtas, o boi-almiscarado não é migratório, como o alce, ou grandes errantes, como as renas. Sua abordagem básica de gerenciamento no inverno é: não faça algo _ apenas fique ali parado. “Você pode vê-los numa forte tempestade, sendo arrastados, cobertos de neve”, disse Lawler. “Eles são praticamente uma parte do cenário”. Eles entram num estado do que pode ser chamado de hibernação ao ar livre, quando seu consumo de oxigênio e produção de dióxido de carbono caem, e sua taxa metabólica se desacelera em cerca de um terço. “Eles basicamente desligam parte de suas engrenagens para que possam sobreviver com menos alimento”, explicou Lawler, que estudou a energética dos bois-almiscarados.

Mesmo ocasionalmente se misturando ao cenário, a espécie não é, de forma alguma, tola como um poste. “Eles vivem em sociedades com laços familiares livres”, disse Berger, e acompanham quem é quem. O grupo, afinal, é essencial para sua sobrevivência. Quando confrontado com predadores como lobos, um grupo de bois-almiscarados forma um círculo _ com os adultos por fora, criando um muro de chifres e protegendo os jovens e vulneráveis atrás deles. Eles também parecem ter uma boa memória dos melhores locais para obter alimento na primavera, com a melhor mistura de pasto e ramos de salgueiro para maximizar o desempenho dos micróbios que trabalham em seus intestinos ruminantes. O boi-almiscarado acaba sendo muito eficiente em extrair as calorias necessárias para sobreviver ao longo jejum de inverno.

Registros históricos e evidências genéticas sugerem que o boi-almiscarado é um Rasputin, “o menino que retornou do Quaternário”, disse Ross MacPhee, curador de zoologia de vertebrados no Museu Americano de História Natural. “Há períodos em que eles crescem muito em número, então caem para um sumiço quase completo, e depois voltam à vida novamente”.

Como resultado de experimentarem contínuas reduções de população, onde apenas um punhado de indivíduos sobrevive para criar as gerações subsequentes, estima-se que os 100 mil bois-almiscarados de hoje sejam incrivelmente homogêneos, sem o tipo de diversidade genética que se imaginava crucial às probabilidades de longo prazo para uma espécie. “Seria difícil argumentar que o boi-almiscarado está a caminho de seu fim”, disse MacPhee. “Eles não são fracos”.

Basta perguntar ao gato com dentes de sabre fossilizado sob o chão.