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Mamífero saltava pelo centro do Brasil há mais de 140 milhões de anos

Pequeno mamífero deixa pegadas Brasilichnium enquanto galopa em duna do deserto Botucatu há 140 milhões de anos - Ilustração: Aline Ghilardi/Agência Fapesp
Pequeno mamífero deixa pegadas Brasilichnium enquanto galopa em duna do deserto Botucatu há 140 milhões de anos Imagem: Ilustração: Aline Ghilardi/Agência Fapesp

Da Agência Fapesp

12/07/2017 10h35

Brasilichnium é o nome dado pelos cientistas às pegadas fossilizadas do mamífero mais antigo de que se tem conhecimento que tenha vivido no Brasil.

O nome é dado às marcas, uma vez que sobre os pequenos quadrúpedes autores não se sabe quase nada, a não ser que habitavam o paleodeserto Botucatu, imensa área coberta por dunas de mais de 1 milhão de quilômetros quadrados que cobria o centro-sul do Brasil entre 150 e 140 milhões de anos atrás, na transição dos períodos Jurássico ao Cretáceo.

As pegadas foram preservadas em lajes de arenito, um tipo de rocha que originalmente era a areia das dunas. A espécie, ou melhor, a icnoespécie Brasilichnium elusivum (de “ichnos”, que em grego quer dizer pegada), foi descrita em 1981 pelo missionário e paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi, com base em dezenas de lajes de arenito retiradas de uma pedreira em Araraquara e também espalhadas pelas calçadas daquela cidade no interior paulista.

Ainda não foram achados na Formação Botucatu esqueletos fósseis de um possível autor das pegadas B. elusivum. Mas pegadas e pistas, essas existem às centenas. No início dos anos 1980, Leonardi estudou lajes com pistas de um pequeno mamífero caminhando. Outras pistas evidenciam um animal correndo ou galopando.

No primeiro semestre de 2017, passados quase 40 anos da descrição original de Leonardi, foram publicados três trabalhos sobre Brasilichnium. Um deles revela que os animais que produziram as pegadas B. elusivum também se locomoviam aos saltos.

Brasilichnium anaiti é o nome de uma nova icnoespécie do gênero Brasilichnium. Trata-se de uma pegada com o dobro do tamanho das pegadas B. elusivum descritas por Leonardi. 

Todas as lajes preservam impressões de pegadas bem maiores do que as B. elusivum. Um total de 41 impressões de pés associadas a 19 impressões de mãos foram estudadas pela primeira vez. Ao medir as pegadas, D’Orazi Porchetti constatou que elas têm praticamente o dobro do tamanho de B. elusivum.

Enquanto as pegadas de pés de B. elusivum não ultrapassam 30 milímetros de largura, o comprimento médio das pegadas naquelas oito lajes é de 44,58 milímetros e sua largura média é de 61,64 milímetros.

“Na icnologia, descrever uma icnoespécie não é o mesmo que descrever uma espécie extinta, quando descrevemos marcas deixada por animais no sedimento ou em outro meio. Uma icnoespécie define, no caso, um tipo peculiar de pegada. Um nome na icnologia é um modo simples e inequívoco de indicar um conjunto de caracteres”, disse D’Orazi Porchetti.

Brasilichnium elusivum também saltava

No segundo estudo sobre Brasilichnium publicado por D’Orazi Porchetti, Langer e Bertini, os autores sugeriram que as pegadas e as pistas de diferentes andares (seja correr, galopar ou o pular bípede) podiam ser chamadas com o mesmo nome, ou seja B. elusivum.

O segundo trabalho foi publicado no periódico Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. Um total de 109 lajes de diversas dimensões, incluindo 991 impressões de pés e de mãos, a maioria organizada em pistas. Dessas, 65 lajes preservam traços que podem ser descritos como B. elusivum. Um total de 669 impressões de pés foram analisadas, associadas a 135 impressões de mãos.

Segundo o estudo, o modo predominante de locomoção seria a caminhada, seguido pela corrida. Em algumas pouquíssimas pistas D’Orazi Porchetti conseguiu identificar a locomoção aos saltos bípedes.

B. elusivum saltava, mas, levando-se apenas em conta as evidências deixadas nas lajes, tratava-se sem dúvida de um modo de locomoção secundário.

Saltitando pelo interior de São Paulo

O terceiro trabalho sobre Brasilichnium, publicado em janeiro, descreve uma terceira espécie. No caso, não foi o tamanho ou a morfologia que contou na hora da descrição, mas o modo de locomoção. As lajes com pegadas B. saltatorium revelam um animal saltitante, como o próprio nome indica.

A descrição de B. saltatorium foi feita pelo doutorando Pedro Victor Buck, com orientação de Marcelo Adorna Fernandes, do Laboratório de Paleoecologia e Paleoicnologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e coautores. O trabalho foi publicado na Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology.

O estudo foi feito com 12 lajes coletadas na pedreira São Bento, de Araraquara, e depositadas no Laboratório de Paleoecologia e Paleoicnologia da UFSCar. Nenhuma dessas lajes foi usada no estudo original de Leonardi, que em 1977 descreveu em artigo pistas de Brasilichnium saltando, ricocheteando e galopando.

“Conseguimos determinar o comportamento saltador de B. saltatorium pela análise morfológica da pista. A configuração dos pés e das mãos na pista indica que o único movimento possível seria o salto, uma vez que cada conjunto de pé e cada conjunto de mão encontram-se alinhados e distantes entre si”, disse Buck.

Como saber se foi o mesmo grupo animal que deixou preservadas para a posteridade pegadas caminhando, correndo, galopando ou saltando?

“Entre os paleoicnólogos existe uma escola de pensamento que propõe usar nomes diferentes para definir os andares diferentes, também no mesmo morfótipo. Este é o caso de B. saltatorium”, disse D’Orazi Porchetti. “Então, B. elusivum compreende também marcas de saltos, as quais por outros autores merecem um nome especifico: B. saltatorium.”

Mamíferos do Gonduana

A constatação de que o animal das pegadas B. saltatorium podia se locomover aos saltos pode parecer irrelevante, mas não é. Baseado no estudo de fósseis de mamíferos mesozoicos, já se sabia de exemplares que viveram há 150 milhões de anos e podiam caminhar, correr, galopar, nadar, e até mesmo planar. Mas pular, isto ainda não se tinha a plena certeza.

A sugestão de que o animal responsável pelas pegadas B. saltatorium saltava é uma das únicas evidências de que tal modo de locomoção, hoje tão comum entre os cangurus, por exemplo, já fazia parte do leque de opções locomotoras dos mamíferos da era Mesozoica, aquela dominada pelos dinossauros.

Há somente três icnogêneros de mamíferos mesozoicos saltadores: a pegada Ameghinichnus patagonicus do Jurássico da Argentina, uma outra nos Estados Unidos e outra ainda na Coreia do Sul. E agora de Brasilichnium.

Há diversos exemplos de pistas e pegadas supostamente deixadas por mamíferos mesozoicos. No caso específico de Brasilichnium, pegadas idênticas às descritas por Leonardi foram encontradas nos anos 1990 nos desertos do oeste dos Estados Unidos (nos estados do Arizona, Califórnia, Nevada e Utah) e norte do México, ampliando e muito a distribuição espacial do icnogênero.

“Brasilichnium é um dos gêneros melhor representados no registro icnológico mundial”, disse D’Orazi Porchetti.

Não se pode afirmar que os autores de todas as pegadas Brasilichnium eram mamíferos. Os animais que produziram as pegadas brasileiras de cerca de 140 milhões de anos, e as pegadas mexicanas entre 85 e 70 milhões de anos, eram muito provavelmente mamíferos. Os fósseis mais antigos de mamíferos de que se tem notícia têm entre 170 milhões e 160 milhões de anos.

Por outro lado, os autores da pegadas jurássicas dos Estados Unidos, feitas entre 200 milhões e 150 milhões de anos, pertenciam quase certamente ao grupo dos terapsídeos mamaliamorfos, ou seja, os ancestrais diretos dos mamíferos.

Todas as lajes com pegadas preservadas nas coleções estudadas pelos autores foram extraídas da pedreira São Bento, que funcionou até 2003 em Araraquara. Colunas de lava com centenas de metros de altura cobriram as dunas do interior de São Paulo. Foi esse o arenito retirado da pedreira São Bento na forma de lajes para assentar nas calçadas de Araraquara. É também a origem do arenito dos mosaicos de pedra portuguesa, tão comuns nas calçadas brasileiras.