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Lagartixas podem indicar caminho para tratamento de lesões na medula

Lagartixa-leopardo com rabo regenerado - Matthew Vickaryous
Lagartixa-leopardo com rabo regenerado Imagem: Matthew Vickaryous

Stefhanie Piovezan

Colaboração para o UOL, em São Paulo

22/12/2017 04h00

A capacidade das lagartixas de gerar novos rabos pode apontar uma forma diferente de tratar lesões na medula espinhal no futuro, segundo pesquisadores do Canadá.

Matthew Vickaryous, professor do departamento de ciências biomédicas da University of Guelph, e o pós-graduando Emily Gilbert analisaram a regeneração da lagartixa-leopardo (Eublepharis macularius) e identificaram as células que viabilizam o processo. O estudo foi publicado recentemente na revista "The Journal of Comparative Neurology" e mostra como se dá a reconstrução da cauda, que nesses animais abriga parte da medula espinhal.

As lagartixas soltam a cauda frente a algum perigo e começam a gerar novos tecidos uma semana depois de perderem. Em um mês exibem uma nova cauda

"Trabalhos anteriores revelaram que células da glia radial estavam presentes no peixe-zebra e em salamandras e que elas eram fundamentais para a regeneração da medula espinhal. Nosso trabalho demonstrou que populações similares dessas células também são encontradas em lagartixas, o que indica uma forte relação entre sua presença e a capacidade de regeneração", explica o professor.

As células da glia radial estão presentes durante o desenvolvimento embrionário e têm um papel crucial na construção do sistema nervoso, atuando inclusive na formação de neurônios. O problema, de acordo com Vickaryous, é que a maioria delas desaparece nos mamíferos com o passar do tempo e, quando a medula é lesionada, ocorre uma cicatrização.

"Nossa esperança é de que, com o estudo de como as lagartixas regeneram sua medula espinhal, possamos desenvolver novas estratégias para uso em condições clínicas", afirma o professor.

Mais próximos dos seres humanos
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Crescimento da nova cauda dura um mês
Imagem: Matthew Vickaryous

Vickaryous trabalha com lagartixas desde 2006 e decidiu focar seus esforços nesses répteis porque, ao contrário de outros animais com capacidade de regeneração, como o peixe-zebra (Danio rerio) e o axolote (Ambystoma mexicanum), seus embriões crescem envoltos por uma bolsa repleta de líquido amniótico, da mesma forma como acontece com humanos.

Como os parentes vivos mais próximos dos mamíferos capazes de regenerar múltiplos tecidos, lagartixas e outros lagartos têm muito a oferecer tanto para a biologia quanto para a biomedicina."

A grande diversidade desses animais, sua capacidade de adaptação e o fato de eles mesmos soltarem a cauda quando expostos a algum tipo de ameaça também contribuíram para a escolha, assim como a rapidez da reconstrução.

Com a melhor compreensão desse processo, os pesquisadores vão analisar agora a ação das células da glia radial em outras partes do corpo dos répteis. "Trabalhos que conduzimos em paralelo mostram que essas células também estão presentes no cérebro. Como a medula espinhal, o cérebro humano não se autorrepara prontamente e esperamos que nossos estudos com lagartixas possam indicar como lidar melhor com as lesões em todo o sistema nervoso central".

Interação homem-máquina, estímulos elétricos e exercícios 
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Imagem de microscópio mostra a proliferação de células (coradas em rosa) na medula espinhal 18 horas após a perda do rabo
Imagem: Matthew Vickaryous

O estudo da regeneração em animais é apenas uma das muitas frentes de trabalho dos cientistas que tentam encontrar formas de lidar com lesões na medula espinhal.

Uma das outras linhas é a da interação com sistemas eletrônicos, como no exoesqueleto usado por um homem paraplégico na abertura da Copa de 2014. O equipamento foi desenvolvido pela equipe do neurocientista Miguel Nicolelis, que no ano passado publicou um estudo sobre os efeitos do uso de interfaces cérebro-máquina.

A pesquisa, divulgada na revista "Scientific Reports", do grupo Nature, verificou o impacto de um período de um ano de treino em duas mulheres e seis homens paraplégicos, e indica uma melhora na sensibilidade dos pacientes e a recuperação do controle de alguns músculos.

Outro exemplo é a frente da estimulação elétrica neuromuscular, à qual o professor Alberto Cliquet Junior, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da USP (Universidade de São Paulo), se dedica há mais de 25 anos. A tecnologia consiste na colocação de eletrodos sobre a pele do paciente e na aplicação de impulsos elétricos de baixa intensidade. Esses estímulos ativam neurônios capazes de criar padrões de movimento e, em alguns casos, permitiram a recuperação da mobilidade.

Também está sendo pesquisado o efeito da atividade física praticada antes das lesões. Coordenado por Jocemar Ilha, professor do Departamento de Fisioterapia da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), o estudo está em fase pré-clínica, com modelo animal.

“Nossos resultados mostram que o exercício realizado em alta intensidade promove uma recuperação da função motora e sensorial acelerada comparada à recuperação espontânea ou àquela observada nos casos de exercícios de leve a moderada intensidade”, diz o pesquisador.

Exoesqueleto é uma das apostas para fazer paraplégicos voltarem a andar - Reprodução/Nature/Lente Viva Filmes - Reprodução/Nature/Lente Viva Filmes
Exoesqueleto é uma das apostas para fazer paraplégicos voltarem a andar
Imagem: Reprodução/Nature/Lente Viva Filmes

Distância entre estudos e tratamentos

Para Ilha, a ciência avançou notavelmente nas últimas décadas, quando se compreendeu que o sistema nervoso central possui capacidade de regeneração, e os progressos da robótica parecem oferecer grande potencial de recuperação e ganho de independência, mas a cura para lesões na medula espinhal ainda é uma utopia.

“Diversas terapias celulares vêm mostrando desfechos promissores, mas ainda sem conseguir uma reversão significativa nas lesões completas”, comenta.

Em teoria podemos recuperar, mas na prática clínica os resultados ainda são modestos."

Secretário-geral da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia e professor da Faculdade de Medicina da USP, Alexandre Fogaça Cristante também acredita que falta muito para que a ciência seja capaz de reverter as lesões.

“O primeiro obstáculo é fazer com que as células neurológicas próximas consigam transpor o local da lesão. Depois disso, essas células precisam se prolongar e chegar até os músculos, voltando a poder controlá-los. Em outras palavras, a célula nervosa precisa atravessar o obstáculo que se forma na região da medula onde houve a lesão e crescer até atingir onde o local onde o impulso elétrico precisa chegar”, explicou.

O próprio Vickaryous vê um longo caminho a ser percorrido.

"Nosso trabalho, assim como os de outros pesquisadores, mostrou que as células da glia radial são protagonistas na restauração da medula espinhal. O tempo dirá como essas descobertas podem ser usadas. Essas células podem ser reintroduzidas em pacientes? Sua presença pode ser simulada para que sejam produzidos resultados funcionais? Há muitas perguntas sem resposta".