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Incêndio no Rio põe em risco coleção de múmias iniciada por Dom Pedro 1º

Foto de 2013: múmia egípcia exposta no Museu Nacional - Fernando Frazão/ABr
Foto de 2013: múmia egípcia exposta no Museu Nacional Imagem: Fernando Frazão/ABr

Do UOL, em São Paulo*

03/09/2018 09h29

Não se sabe ainda a extensão do prejuízo ao acervo causado pelo incêndio que arrasou o Museu Nacional na noite do último domingo (2). Mas o fogo que atingiu o edifício pode representar o fim de um projeto ambicioso iniciado em 1826 por Dom Pedro 1º: dar ao Brasil uma coleção de arte egípcia - o que, na época, era moda entre a nobreza europeia.

A prática começou após a campanha napoleônica pelo Egito. Todo tipo de peça despertava interesse de colecionadores particulares e responsáveis pelas primeiras coleções egípcias dos museus europeus, como o Louvre e o Museu Britânico. A maioria delas vinha de tumbas, os locais mais fáceis de serem pilhados.

Em 1826, um italiano que levava na bagagem diversas dessas peças antigas parou no Rio de Janeiro. Apesar de seu destino final ser, a princípio, a Argentina, decidiu vender ali toda a sua coleção. Um comprador apareceu e arrematou tudo: era o imperador Dom Pedro 1º, que deu origem à maior coleção egípcia da América Latina, hoje no Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). 

O comerciante que vendeu a coleção de antiguidades para o imperador era Nicolau Fiengo, que trazia de Marselha, na França, peças descobertas na necrópole de Tebas, atual Luxor, pelo explorador italiano Giovanni Battista Belzoni. 

Incêndio no Museu Nacional: O Acervo Perdido

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"Por algum motivo, o imperador ficou interessado [na coleção de antiguidades egípcias]. Havia uma onda de interesse por Egito que começou com Napoleão Bonaparte, e Dom Pedro se envolveu com a maçonaria, que tem relação com o Egito antigo", contou ao UOL em abril deste ano o egiptólogo Antonio Brancaglion Jr., pesquisador do Museu Nacional.

O Museu Nacional possui em seu acervo o recibo dessa compra, e ainda não se sabe se o documento sobreviveu ao incêndio.

Na época da aquisição, era comum o comércio de múmias de pessoas e animais, sarcófagos e amuletos roubados em cidades egípcias e vendidos em países como Itália, Inglaterra e França. A campanha de Napoleão Bonaparte no Egito ocorreu nos últimos anos do século 18. As primeiras regras de preservação e guarda dos monumentos egípcios surgiram em 1835, quando o francês Auguste Mariette criou no Egito o Museu Boulaq. 

A partir de 1970, uma série de convenções da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) criou os princípios e normas de preservação do patrimônio cultural dos países. O Egito pede que peças egípcias antigas espalhadas por diversos museus do mundo retornem ao país. Contudo, o Icom (Conselho Internacional dos Museus) considera que essas peças já fazem parte do patrimônio dos países onde estão. Atualmente, existem regras internacionais e leis que proíbem o comércio internacional de antiguidades. 

Múmia 2 - Museu Nacional/UFRJ - Museu Nacional/UFRJ
Detalhe do caixão da múmia Sha-Amun-em-Su
Imagem: Museu Nacional/UFRJ

Relíquias foram pagas em prestações

Segundo o especialista, não se sabe o quanto foi pago pela coleção de peças em valores atuais. "Mas foi caro, porque teve que ser pago à prestação, e o comerciante ficou esperando no Rio por todas as parcelas". Contudo, não fica claro se Dom Pedro 1º usou finanças próprias ou da Coroa para adquirir a coleção -- apesar dessas carteiras serem pouco diferenciadas na época.

Fato é que a coleção ficou para a família do Imperador, mais especificamente para seu filho, Dom Pedro 2º, e posteriormente compôs o acervo do Museu Real, que virou o atual Museu Nacional.

"É uma coleção antiga, interessante não só pelos objetos, mas também porque são da época do início da história da egiptologia. Vieram de lotes que constituíram outros museus. Há partes dessas peças aqui, outras no Louvre, no museu de Turim, do Cairo", conta Brancaglion.

Gato mumificado do período romano séc 1 a.C - Museu Nacional/Divulgação - Museu Nacional/Divulgação
Gato mumificado do período romano séc 1 a.C
Imagem: Museu Nacional/Divulgação

Coleção cresce com Dom Pedro 2º

A coleção que já era imponente recebeu um incremento ainda no século 19, após viagem de Dom Pedro 2º ao Egito. Em 1876, o imperador ganhou do soberano do país, o quediva Ismail, o sarcófago pintado da “Cantora de Amon” Sha-Amun-em-su. A peça foi mantida em seu gabinete até 1889, quando foi deposto pela proclamação da República.

Foi seu pai quem iniciou a coleção de peças egípcias no Brasil, mas Dom Pedro 2º levou a fama. Ele se interessava por egiptologia, sabia ler hieróglifos e importava livros raros como as do egiptólogo francês Jean-François  Champollion. "Obras tão valiosas quanto as múmias", diz Brancaglion.

Atualmente, o acervo no museu Nacional conta com mais de 700 objetos. Entre eles, há múmias humanas inteiras e em partes -- como cabeças, mãos e pés, como era usual em determinado período no Egito --, e de animais. Além disso, há vasos canopos -- recipientes utilizados no Antigo Egito para colocar órgãos retirados do morto durante o processo de mumificação --, esquifes e amuletos.

Kit completo: múmia, sarcófago e sudário

Na compra feita por Dom Pedro havia cinco múmias humanas inteiras. São três adultos e duas crianças. Provavelmente, o imperador comprou o kit da múmia completo, que conta com o sarcófago e o sudário que envolvia a múmia como uma "pamonha", explica Brancaglion. Há gravado em dois sarcófagos o nome das múmias que eles guardariam pela eternidade: Harsiesi e Hori. 

Múmia 3 - Museu Nacional/UFRJ - Museu Nacional/UFRJ
Múmia sem as bandagens da coleção do Museu Nacional
Imagem: Museu Nacional/UFRJ

Alguns dos kits adquiridos pelo imperador foram 'montados' pelos comerciantes. "A cartonagem do sarcófago, a múmia e a máscara não são da mesma época, e sim de períodos diferentes", explica Brancaglion. "Os comerciantes abriam os sarcófagos. Mas era mais valioso vender caixão e múmia juntos."

Já a múmia trazida do Egito por Dom Pedro 2º possui nome e sarcófago originais, que são do período entre 700 a.C  e 800 a.C. O caixão em que a cantora Sha-Amun-em-su está guardada nunca foi aberto.

Das outras múmias não se sabe a identidade, mas provavelmente eram pessoas da elite egípcia, já que a mumificação era algo caro e pouco acessível à maioria da população. "Não são múmias de faraós, mas foram feitas com a mesma preocupação que a de um faraó", conta Brancaglion.

O cérebro foi retirado pela narina esquerda, a bandagem utilizada é de linho e a resina de boa qualidade. A múmia mais antiga data de cerca de 1.000 aC., e a mais recente, de um período de um século antes ou depois do nascimento de Cristo.

Além de maior e mais antiga coleção da América Latina, o acervo de peças egípcias do Museu Nacional é o mais antigo de todas as Américas. 

Múmia 4 - Museu Nacional/UFRJ - Museu Nacional/UFRJ
A múmia Hori, que seria um sacerdote do templo do deus Amon em Karnak (cerca de 1070-664 a.C.)
Imagem: Museu Nacional/UFRJ

O esforço do Rio para preservar múmias em clima úmido

Além dos desafios de preservar as múmias com o passar do tempo, o Museu Nacional tinha  de lutar contra um inimigo adicional: a umidade do ar carioca. 

"As múmias foram feitas para clima seco. Por isso há problemas de conservação [em climas quentes e úmidos], aparecem fungos que deterioram a múmia", completa. Para serem conservadas, o Museu Nacional mantinha as múmias em vitrines monitoradas e com tratamento especial. 

"O período vitoriano [meados do século 19] era meio esotérico. No Reino Unido, tinha shows em que múmias eram desenfaixadas. Tiravam toda a bandagem, e as pessoas tentavam adivinhar o sexo da múmia. Por algum motivo, cuidaram bem do acervo [no Brasil]. não fizeram experimentos, não houve tentativas de abrir o caixão [da múmia fechada], mantiveram a coleção intacta", conta o especialista.

Múmia 5 - Museu Nacional/UFRJ - Museu Nacional/UFRJ
A múmia Harsiesi, que seria também um sacerdote do templo do deus Amon (cerca de 1070-664 a.C.)
Imagem: Museu Nacional/UFRJ

As múmias também têm coração

A princípio, todas as múmias possuem um coração. Na mumificação, todos os órgãos eram retirados, menos aquele que os egípcios acreditavam ser o repositório de toda memória da vida da pessoa. Contudo, com o tempo, o coração seca e quase desaparece. Por erro, às vezes o coração acabava retirado junto com o pulmão, e era substituído por um amuleto.

"O coração é o órgão da ressurreição, uma espécie de backup de tudo que se fez em vida, de bom e de ruim", conta Brancaglion. Na religiosidade egípcia, partir dele que as pessoas eram julgadas no "Tribunal da Alma", "onde o coração era pesado para ver se pessoa foi boa ou não", afirma. As pessoas justas teriam então o direito de viver nova vida na eternidade.

Dentre as múmias do Museu Nacional, foi possível verificar por tomografia que uma delas possui ainda o coração. Já a "Cantora de Amon" tem um escaravelho no lugar do coração.

Os animais mumificados também revelam algo interessante da cultura egípcia. Na crença egípcia, os animais possuíam uma alma, e havia o costume de se mumificar animais de estimação. Contudo, os comprados por Dom Pedro 1º eram animais vendidos para fiéis os oferecerem aos deuses em templos.

Tomografia para não abrir múmias

Mesmo sem nunca ter sido aberta, foi possível estudar a "Cantora de Amon" utilizando-se tomógrafos. "Com a tomografia não é preciso abrir o caixão, tirar a bandagem da múmia. Isso seria destrutivo", afirma Brancaglion. Os pesquisadores utilizam tomógrafos de uma clínica particular parceira do museu, calibrada para olhar através das bandagens e das camadas do sarcófago.

Há apenas duas múmias adultas que ainda não tiveram tomografia realizada. Mas está entre os planos do museu fazer a tomografia todas, inclusive as que já passaram pela análise. "Com o avanço da técnica de tomografia, as resoluções ficam melhores, consegue-se ver coisas que não se viam. Com certeza encontraríamos coisas novas", diz o egiptólogo.

*Reportagem original de Fernando Cymbaluk publicada pelo UOL Notícias em abril de 2018