Topo

Álcool altera memória e faz consumidor querer sempre mais, diz estudo

Getty Images
Imagem: Getty Images

Edison Veiga

Colaboração para o UOL, em Milão (ITA)

25/10/2018 12h01

No auge da ressaca, é comum se prometer que não beberá de novo. Mas alguns dias (ou horas) depois, a vontade de abrir uma garrafa de vinho ou de tirar a cerveja da geladeira parece superar as lembranças dos estragos da noite anterior. E a ciência está mais perto de entender por quê.

Um estudo realizado na Universidade Brown, nos Estados Unidos, publicado nesta quinta-feira (25) pela revista ‘Neuron’ mostra que isso acontece devido à ação molecular do álcool, que interfere na formação das memórias de quem o consome.

Compreender este fenômeno pode ser uma ferramenta a mais para quem busca soluções contra a dependência e o abuso de álcool. A expectativa dos pesquisadores é que, no futuro, medicamentos e terapias possam atuar nesses sinais moleculares.

Não existe experiência ruim - na memória

Segundo a neurocientista Karla Kaun, principal autora do estudo, uma ingestão moderada de álcool já altera a formação das memórias no nível molecular e cria "memórias de recompensa". É aquela sensação positiva evocada depois de um comportamento, que faz com que a pessoa tenha vontade de repeti-lo.

“Buscamos compreender por que o abuso de álcool e drogas pode produzir memórias gratificantes quando, na verdade, produzem neurotoxinas”, afirma Kaun.

“Todas as drogas – álcool, opiáceos, cocaína, metanfetamina – têm efeitos colaterais adversos. Deixam os usuários enjoados, dão ressaca às pessoas... Por que as achamos tão recompensadoras? Por que nos lembramos das coisas boas sobre elas e não das ruins? Minha equipe busca entender em um nível molecular o que as drogas causam nas pessoas, por que elas provocam desejos", disse.

A pesquisadora conta que entender o que acontece com as moléculas nesta formação dos desejos pode ser passo importante para ajudar a recuperar alcoólatras e viciados em outras drogas. “Talvez possamos diminuir o tempo ou a intensidade dessas memórias de desejo”, vislumbra.

Cérebro de mosca

Para o estudo, os pesquisadores utilizaram drosófilas – as moscas-da-fruta – como cobaias alcoólatras para analisar como a bebida “sequestra” a formação das memórias. Enquanto os seres humanos têm mais de 100 bilhões de neurônios, o inseto tem apenas 100 mil - daí a escolha.

Os pesquisadores usaram ferramentas genéticas para desativar os genes-chaves ao mesmo tempo em que as mosquinhas eram treinadas para encontrar mais álcool. Isso permitiu que Kaun e sua equipe “vissem” quais proteínas eram fundamentais no comportamento de recompensa.

Foi quando eles notaram que esse comportamento tem origem na via de sinalização Notch, um receptor da membrana celular que, quando ativado, faz a célula produzir proteínas.

No caso do consumo de álcool, ativa-se a produção de proteína capaz de reconhecer a dopamina – justamente provocando a sensação de bem-estar. Ou seja: o álcool atua justamente neste caminho, o da formação da sensação agradável ou não de uma memória.

Kaun observou que o processo nunca significou “ligar ou desligar” o gene da dopamina. A alteração foi sempre com relação à quantidade de proteína produzida.

Biologicamente, portanto, para quem consome álcool a lembrança sempre vai ser boa – as variações serão de intensidade. “Com este estudo, concluímos que é preciso não só analisar quais genes são ativados e quais são desativados, mas também as formas como esses genes passam a atuar”, comenta a cientista.

Kaun acredita que uma taça de vinho já desencadeia esse processo de alteração na memória. “Mas a pessoa já volta ao normal em uma hora”, calcula. “Já se você ingerir três taças, mesmo com um intervalo de uma hora entre elas, esse efeito vai durar por 24 horas.”

Outros campos de pesquisa

Agora os pesquisadores estão estudando como opiáceos interferem nas vias moleculares – a expectativa é que os resultados sejam semelhantes. “Acreditamos que tais resultados podem ser traduzidos para outras formas de vício, mas agora estamos estudando isso”, comenta a cientista.

Em paralelo, uma parceria com um professor de psiquiatria e comportamento humano da mesma universidade deve possibilitar o exame de amostras de DNA de pacientes alcoólatras. A intenção dos cientistas é descobrir se há alguma variação genética que possa indicar esse comportamento abusivo.