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Difícil decorar fórmulas? Memória humana nunca acaba -e isso é um mistério

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Edison Veiga

Colaboração para o UOL, em Milão (Itália)

11/11/2018 04h01

Jogos para melhorar a memória. Como memorizar um texto. Técnicas para decorar uma fórmula para a prova. Durante os períodos de provas e vestibulares, aumentam as buscas como essas. Mas o que funciona e o que é lenda? A verdade é que a ciência, até hoje, ainda conhece pouco sobre o funcionamento da memória humana.

"Não sabemos quase nada", diz Valdemar Setzer, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade de São Paulo (USP). Ele diz que, quando o assunto envolve o cérebro, há muito mistério.

Um exemplo: estima-se que a memória humana nunca acaba. Mas não se sabe como e isso acontece. Se fica armazenada no cérebro, e ele não cresce, como sempre há espaço "a mais" para memórias extras?

Também há registros de gente que melhorou a capacidade de retenção de conhecimentos, mas ninguém descobriu ainda exatamente como isso acontece. Também é sabido que algumas pessoas têm melhor capacidade de memória do que outras, mas é difícil medir se isso é genético ou adquirido.

"Estudos longos sobre evolução ou involução da memória não elucidaram quais fatores externos, como jogar palavras cruzadas, realmente influenciam", diz o neurocientista Richardson  Leão., do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Em pesquisa divulgada em outubro, neurocientistas da Universidade da Califórnia disseram que estimular as ondas cerebrais teta, de baixa frequência, ajuda a melhorar a capacidade de memorização.

Eles testaram aparelhos comercializados para estimular essas ondas com 50 voluntários e constataram ganho na capacidade de memória. O procedimento foi repetido novamente em uma nova amostra, com 40 voluntários, e os resultados foram semelhantes.

Memória - Divulgação - Divulgação
Diferentemente das memórias "artificiais", a humana parece não ter limite
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“Na verdade, não temos ideia de como é o processo de memorizar ou se lembrar de algo, nem mesmo uma coisa extremamente simples como a representação do numeral dois: 2”, exemplifica Setzer.

“Muitos cientistas acham que a memória está nas sinapses, que são as conexões entre os neurônios, mas não se detectou como por exemplo o '2' está representado, em quais sinapses. Sabe-se que elas estão envolvidas em processos mentais, mas não se sabe como funcionam", disse Setzer.

Em outras palavras, por mais que se saiba que a memória acontece no cérebro, não se sabe em qual parte do órgão, ou em qual célula exatamente está alojada a memória referente a uma coisa ou outra.

A memória é física?

É motivo de controvérsia definir se processos mentais, como a memória, são físicos, químicos ou de que natureza. “Eles se utilizam do cérebro, mas não se originam nele”, afirma o professor Setzer.

"Assim, uma lesão cerebral pode afetar alguns desses processos, pois afetou a participação e não a origem", explica Setzer.

Uma evidência que reforça a ideia de que a memória não é física é o fato de ela ser infinitamente expansível. "Ninguém jamais teve a vivência de querer memorizar um número de telefone ou o nome de uma pessoa e não haver mais ‘lugar’ para isso. Baseado nisso, vários neurocientistas estão começando a admitir que a memória é ilimitada. Nesse caso, ela não pode ser física.”

Mas não há consenso, sobretudo quando as explicações partem de áreas diferentes do conhecimento humano.

"No sentido de 'mais neurônios' provavelmente a memória não é física, mas há variações genéticas que causam variações na memória episódica, a memória de eventos autobiográficos, entre indivíduos", afirma Leão.

“A memória depende de variáveis neurobiológicas, portanto físicas e hereditárias, mas também influenciada por diferentes fatores ambientais e emocionais”, diz a psicóloga Camila Cruz Rodrigues, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Segundo a professora, há diferentes tipos de memória.

“Em relação ao tempo de armazenamento, existe a memória de curto prazo e a memória de longo prazo”, detalha. “A memória de curto prazo dura até 30 segundos e tem uma capacidade limitada de quantidade de informações a serem armazenadas, já a memória de longo prazo tem potencial para ter duração permanente e ilimitada na quantidade de informações.”

Rodrigues ressalta que, independentemente do tipo de memória, seu mecanismo ocorre em três etapas:

  1. Armazenamento
  2. Consolidação
  3. Evocação das informações

Estudioso dos processos de cognição, o médico Rodrigo Duprat defende que a memória “nada mais é do que uma conversa química entre os neurônios”.

“Isso exige uma ampla rede sináptica, exige que a gordura do cérebro seja bem desenvolvida”, exemplifica.

“Ou seja: a memória é um processo físico, porque depende de uma porção de substâncias neurotransmissoras.”

É por isso que, segundo Duprat, a capacidade de memorizar depende de aspectos hereditários – mas também pode ser aprimorada. “Essas características vêm da genética, mas também da forma como o cérebro é estimulado”, afirma.

“A memória depende de fatores biopsicossociais, portanto é influenciada por inúmeros fatores. Entre eles, a atenção e a emoção, que podem aumentar ou diminuir a capacidade de memória”, acredita a psicóloga Rodrigues.

“Além disso, as estratégias mnemônicas utilizadas pelas pessoas podem auxiliar na memória.”

Alimentos para memória - Gabriela Sánchez/VivaBem - Gabriela Sánchez/VivaBem
Alimentos para a memória: estima-se que o processo depende de 'gordura' no cérebro - e por isso, algumas substâncias podem ser benéficas
Imagem: Gabriela Sánchez/VivaBem
Treino ou vitamina?

Para melhorar a memória, o que funciona melhor: treino ou vitamina. Para Duprat, ambos os estímulos funcionam.

“Existem substâncias, como um derivado do ômega 3, que aumentam a gordura do cérebro. Assim, há mais substrato para o cérebro”, cita Duprat.

“Há ainda medicações que aumentam o fluxo sanguíneo e que reforçam as sinapses, por exemplo.” O médico lembra também da importância de diversas técnicas de treinamento, que estimulam a capacidade de memória sem a ingestão de nenhuma substância.

"Vários trabalhos, inclusive do nosso instituto, mostraram que o sono ajuda na formação da memória para eventos recentes. A longo prazo porém, não se sabe o que pode ser feito para 'aumentar a memória'", diz Leão. 

Setzer defende que “o exercício da memória aumenta a capacidade de seu uso”. “É interessante que na velhice, como a minha, muitas pessoas começam a se recordar de eventos da infância, que haviam esquecido, e se esquecem de eventos que acabaram de ocorrer”, comenta.

"Porém, em curtos espaços de tempo, fatores como exercício físico e dieta parecem ter algum papel significativo no 'lembrar'. Estudos recentes também mostraram a importância de receptores para a dopamina para a memória episódica", diz Leão. Para ele, alguns hábitos que podem comprometer a capacidade de memorização.

"O estilo de vida pode diminuir a memória. Falta de exercícios físicos, alcoolismo e tabagismo são extremamente detrimentais à manutenção da memória. Até por que esses fatores causam déficits de suprimento arterial a redes neurais diretamente associadas à codificação e recuperação de memórias", explica o especialista.

Diferenças

Embora os pesquisadores concordem que seja possível melhorar as capacidades de memória, também há um entendimento de que tal facilidade seja uma característica que depende de indivíduo para indivíduo.

“As pessoas têm diferentes habilidades cognitivas. Existe uma média esperada para as pessoas, de acordo com a faixa etária e a escolaridade, portanto existe diferença na memória das pessoas”, explica Rodrigues.

“A memória é como qualquer outra característica do organismo. Da mesma maneira que existem pessoas com mais musculatura do que outras, existem pessoas com mais memória do que outras. Há um padrão de hereditariedade”, define Duprat.