Topo

Milhares de supertelescópios escondem-se dentro de conchas no fundo do oceano

Dan-Eric Nilsson / Lund University / The New York Times
Imagem: Dan-Eric Nilsson / Lund University / The New York Times

Carl Zimmer

10/12/2017 04h00

É difícil enxergar o que há de tão especial em uma vieira. Ela lembra muito um marisco, mexilhão ou qualquer outro bivalve. Dentro de sua concha articulada espreita uma criatura melhor degustada grelhada com manteiga.

Porém, existe algo mais nessa iguaria: a vieira vê seu mundo com centenas de olhos. Dispostos pela abertura de sua concha, eles brilham como um colar subaquático. Cada um fica na ponta de seu próprio tentáculo e pode ser esticado além do limite da concha.

Embora alguns olhos de invertebrados possam perceber somente luz e escuridão, cientistas suspeitavam há muito tempo que as vieiras conseguiam compreender imagens, talvez até reconhecendo predadores com velocidade suficiente para escapar em segurança. Contudo, os olhos da vieira – cada um do tamanho de uma semente de papoula – são tão minúsculos e delicados que os pesquisadores sofrem para compreender seu funcionamento.

Agora, uma equipe de cientistas israelenses conseguiu analisar a sofisticação escondida nos olhos da vieira, graças a poderosos novos microscópios. Há poucos dias, eles informaram no periódico "Science" que cada olho contém um espelho miniatura composto por milhões de quadrados. O espelho reflete a luz que entra em duas retinas, sendo que cada uma consegue detectar partes diferentes das cercanias do animal.

O olho humano já foi comparado a uma câmera – ele usa uma lente para concentrar a luz na retina. A nova pesquisa sugere que os olhos da vieira são mais parecidos com outro tipo de tecnologia – um telescópio refletor como o inventado por Newton. Hoje em dia, astrônomos constroem telescópios refletores gigantes para examinar o espaço profundo, também montando seus espelhos em quadrados.

"Para mim, Newton e Darwin estão juntos nesses olhos", afirma Gáspár Jékely, neurocientista da Universidade de Exeter, Inglaterra, que não participou do novo estudo.

Estudos anteriores deram aos cientistas pistas de que os olhos da viera eram estranhamente complexos. Cada um tem lentes, um par de retinas e uma estrutura semelhante a um espelho na parte posterior. Os pesquisadores suspeitavam que a luz passasse pelas lentes e as retinas, quase transparentes, fosse refletida no espelho e voltasse a atingir as retinas.

Entretanto, ninguém sabia como o espelho funciona ou por que as vieiras precisavam ter duas retinas quando outros animais necessitam de somente uma.

Vieira - Ceri Jones/Haven Diving Services / The New York Times - Ceri Jones/Haven Diving Services / The New York Times
Imagem: Ceri Jones/Haven Diving Services / The New York Times
Benjamin A. Palmer, pesquisador de pós-doutorado do Instituto Weizmann de Ciência, Israel, e colegas usaram recentemente uma nova e poderosa ferramenta conhecida como microscópio crioeletrônico para examinar os olhos da vieira.

Ele e colegas congelaram fatias dos olhos, possibilitando inspecionar o tecido em seus detalhes moleculares. Em outubro, três pioneiros da microscopia crioeletrônica ganharam o Prêmio Nobel de química de 2017.

Há muito tempo os pesquisadores sabem que o espelho no olho da vieira é composto de uma molécula de guanina. Ela é mais conhecida por ser um dos principais componentes do DNA, mas em alguns animais a guanina está organizada em cristais que refletem a luz.

Alguns peixes têm uma tonalidade prateada nas escamas graças aos cristais de guanina. Camaleões utilizam esses cristais para ajudar na mudança de cor da pele. Todavia, ninguém sabia como a guanina ajudava as vieiras a enxergar.

Empregando microscópios crioeletrônicos, Palmer e colegas descobriram que as vieiras fazem um tipo de cristal de guanina nunca antes visto na natureza: um quadrado achatado. "Ficamos impressionados. Sabíamos que era algo muito legal", declara.

Os pesquisadores descobriram que os espelhos são feitos com entre 20 e 30 camadas de guanina, cada uma contendo milhões de quadrados dispostos como azulejos na parede.

"Ver essa ladrilhagem quadrada é algo completamente novo", diz Daniel I. Speiser, ecologista visual da Universidade da Carolina do Sul, que não participou do estudo.

Palmer e colegas tiraram radiografias dos olhos das vieiras para determinar que as camadas formam uma tigela de fundo achatado. Criaram um modelo computadorizado do olho inteiro baseados nesses achados, permitindo traçar os caminhos que a luz percorre ao refletir no espelho.

De forma paradoxal, os quadrados de guanina não refletem a luz – eles são transparentes. Todavia, sua disposição os transforma em um espelho coletivo.

As camadas de ladrilhos são separadas por finas camadas de fluido, e à medida que o raio de luz passa por elas, ele vai se curvando cada vez mais em relação à direção original. Por fim, a luz dá meia-volta, regressando à frente do olho.

Segundo os pesquisadores, esse esquema funciona bem para a visão subaquática porque se sai melhor ao refletir algumas cores de luz do que outras. "Temos um espelho que basicamente reflete cem por cento da luz azul que recebe. Faz todo sentido que ele reflita toda a luz existente em seu ambiente", conta Palmer.

O modelo criado por Palmer e colegas também pode resolver o mistério das duas retinas. Os pesquisadores descobriram que cada retina recebe luz muito concentrada de partes diferentes do campo de visão do animal.

Uma retina pode criar uma imagem nítida do que está diante do olho. A outra retina dá uma melhor visão periférica.

Palmer supõe que a vieira pode usar cada uma das retinas para enfrentar desafios diferentes.

A retina que vê o campo central da visão pode permitir ao animal reconhecer rapidamente a chegada de predadores, possibilitando partir em retirada nadando para longe.

A vieira pode prestar atenção à visão periférica quando procura um ponto no leito marinho onde se acomodar para se alimentar.

O novo estudo demonstra que o olho é tremendamente complexo. Além disso, as centenas de olhos na vieira enviam sinais a um só aglomerado de neurônios, que podem combinar essa informação e criar uma imagem rica do mudo externo.

Para Speiser, isso parece um exagero. Por que um bivalve bastante comum precisaria de tecnologia de visão do estilo de "Guerra nas Estrelas"? "A razão pela qual enxergam tão bem ainda é um enigma", diz ele.

Para Palmer, o olho da vieira pode servir de inspiração para novos inventos. Existem precedentes nesse sentido. A agência espacial norte-americana, a Nasa, construiu detectores de raios X para estudar buracos negros copiando olhos de lagostas. Talvez um olho artificial de vieira possa tirar fotos na escura água marinha.

Palmer, todavia, está mais empolgado com a perspectiva de criar materiais novos na engenharia. Seu estudo mostra como a vieira desenvolveu sua capacidade de formação de cristais, montando formatos que os pesquisadores não julgavam possíveis.

Por enquanto, ninguém imagina como fazem isso. "A sua compreensão poderia abrir a porta para coisas muito maiores do que a fabricação de um único equipamento", conclui.