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Mudança climática é nova "fumaça tóxica", alertada por cientistas e ignorada por governos

Grande nevoeiro batizado de "neblina assassina" matou quase 12 mil pessoas em Londres, em 1952 - Wikimedia Common
Grande nevoeiro batizado de "neblina assassina" matou quase 12 mil pessoas em Londres, em 1952 Imagem: Wikimedia Common

Jane E. Brody

The New York Time

16/03/2018 04h00

Ignore os avisos dos cientistas por sua própria conta e risco. Essa é uma lição muito valiosa que os Estados Unidos podem aprender com uma tragédia horrível relacionada ao clima que se abateu sobre Londres em 1952, inundando a cidade com uma fumaça tóxica que ceifou a vida de milhares de pessoas. Se Londres tivesse agido como fora sugerido após um desastre quase idêntico ocorrido em Donora, Pensilvânia (EUA), quatro anos antes, muitas mortes poderiam ter sido evitadas.

A "neblina assassina", como passou a ser chamada, de cor marrom-amarelada, reduziu a visibilidade a 50 centímetros. Milhares de toneladas de fumaça de carvão sulforoso e de diesel ficaram presas em uma área de 50 quilômetros por uma inversão térmica úmida e fria, cobrindo Londres com um manto de ar venenoso. Em menos de uma semana, a névoa matou quase 4.000 pessoas e outras 8.000 morreram prematuramente nos meses seguintes.

Os cientistas britânicos alertavam para esse desastre, mas, infelizmente, as medidas preventivas sugeridas por eles foram aprovadas pelos legislados, mas nunca colocadas em prática. Para piorar ainda mais, o governo ignorou o alerta dos meteorologistas segundo os quais uma neblina extraordinariamente densa desceria sobre Londres.

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Demorou quase quatro anos para o Parlamento aprovar a Lei do Ar Limpo, em 1956, que restringiu a queima de carvão em áreas urbanas e ajudou as famílias a substituir o carvão por formas menos prejudiciais de aquecer o lar.

Os paralelos com esse evento climático catastrófico e as preocupações atuais a respeito da mudança climática são difíceis de ignorar. À medida que o clima do mundo esquenta, aconteceu uma elevação no número de secas devastadoras e incêndios florestais destruidores de vidas e propriedades, deslizamentos de terra e inundações.

Enquanto isso, as calotas polares estão derretendo e, apesar dos alertas desesperadores de cientistas muito respeitáveis, o atual governo norte-americano pouco faz para proteger seus cidadãos de futuros desastres climáticos, que os cientistas têm certeza que irão acontecer. Pelo contrário, houve pressão para retomar o uso de carvão e extinguir medidas regulatórias que ajudaram a limpar o ar e água de poluentes.

Da mesma forma, o afrouxamento das regras e compromissos de administradores de agências que têm fortes vínculos com os setores que supervisionam ameaça a segurança e a salubridade dos alimentos e bebidas que consumimos e ofertamos aos mais vulneráveis: crianças, idosos e aqueles com a imunidade afetada. Agências encarregadas de proteger a saúde pública estão sob fogo cerrado e trabalhando com recursos reduzidos.

Será preciso uma calamidade, como um surto de intoxicação alimentar que mate dezenas de milhares ou uma epidemia mortal de uma doença infecciosa, para acordar o Congresso para os perigos que nos aguardam, e estimulá-lo a proteger os cidadãos que deve servir?

A história está cheia de exemplos de orientação cientificamente sólida que foi ignorada ou ridicularizada pelas pessoas no poder. No final da década de 1990, por exemplo, meia dúzia de grandes organismos de saúde, como o Departamento de Serviços Humanos e de Saúde, apoiaram um programa nacional de troca de seringas para controlar a disseminação do HIV/Aids. Porém, o presidente Bill Clinton rejeitou o conselho, e as infecções por HIV resultantes custaram à saúde pública US$ 500 milhões (cerca de R$ 1,6 bi).

Em março do ano passado, Scott Pruitt, recém-nomeado diretor da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, rejeitou a proposta do governo anterior de proibir o uso de um pesticida agrícola, o clorpirifós, fabricado pela Dow Chemical. O painel consultor científico da agência concluíra em 2016 que crianças corriam o risco de sofrer lesões cerebrais irreversíveis e problemas de desenvolvimento neurológico com níveis extremamente baixos de exposição a resíduos da substância em alimentos, que continua a ser amplamente utilizada em frutas e verduras.

Com a intenção de estimular a indústria do carvão, Pruitt, que também rejeitou ciência climática consagrada, inutilizou as regras do Plano de Energia Limpa, adotado pelo governo Obama, para minimizar a poluição que aprisiona o calor. Uma tendência de aquecimento na temperatura da superfície marinha no Atlântico Norte nas últimas décadas tem sido veementemente associada à disseminação de patógenos marinhos potencialmente mortais como o "Vibrio cholerae", causador da cólera, e do "V. parahaemolyticus", causador de intoxicação alimentar, e poderia levar a surtos amplos.

Medidas para a segurança alimentar também estão em risco. Foi postergada indefinidamente a aplicação de regras de modernização da segurança alimentar, da FDA, a agência norte-americana reguladora de alimentos e medicamentos, sancionada há sete anos com apoio bipartidário para proteger os consumidores da exposição a patógenos perigosos como salmonela e "E. coli". Parte da cadeia de quem colhe, embala e armazena alimentos produzidos em fazendas agora está isenta de seguir a lei para impedir a contaminação dos produtos alimentícios. Mesmo assim, todos os anos, 48 milhões de pessoas nos EUA adoecem, 128 mil são internadas e 3.000 morrem em decorrência de enfermidades preveníveis transmitidas pela comida.

As regras de segurança alimentar frouxas da União Europeia deveriam servir de lição. França e seus aliados estão atordoados com amplos "recalls" de leite em pó e outros produtos contaminados com salmonela, crise que teria se originado de normas fracas que permitiam que produtos estragados chegassem a supermercados e farmácias semanas após o problema ter sido descoberto.

A redução nutricional causada pela concentração crescente de dióxido de carbono, o principal gás do efeito estufa na atmosfera, é outro risco para a salubridade da produção alimentar nos EUA, segundo especialistas. Samuel S. Myers, principal pesquisador da Faculdade T.H. Chan de Saúde Pública, de Harvard, e colegas associaram reduções importantes em zinco, ferro e proteína em grãos fundamentais, como arroz e trigo, e reduções menores de proteínas em legumes com o nível crescente de dióxido de carbono no ar.

Os pesquisadores demonstraram tais efeitos cultivando 41 variedades agrícolas sob as condições que devem existir em 2050 a menos que haja um grande declínio na poluição por dióxido de carbono.

Em entrevista, Myers explicou que uma redução pequena no conteúdo proteico dos grãos poderia levar ao aumento do consumo de carboidrato e à elevação de doenças metabólicas como diabetes e problemas cardíacos que já ameaçam a população com sobrepeso. Reduzir a emissão dos gases do efeito estufa para combater o aquecimento global pode gerar não somente benefícios em longo prazo à saúde pública como também outros imediatos, segundo Andy Haines, da Faculdade de Higiene e Medicina Tropical de Londres.

Por exemplo, um aumento nas caminhadas e pedaladas em vez de se valer de veículos movidos a combustível, ajudaria a deter diabetes, doenças cardíacas, acidente vascular e outras enfermidades crônicas associadas a um estilo de vida sedentário. Segundo ele, uma mudança para "dietas saudáveis ambientalmente mais sustentáveis" serviria para ajudar a conter os gases do efeito estufa, também auxiliando a diminuir a mortalidade como um todo.