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A cidadezinha inglesa em que a procura por dinossauros é atração turística

Lyme Regis é uma das regiões mais ricas em fósseis da Inglaterra e até do mundo - Andy Haslam/The New York Times
Lyme Regis é uma das regiões mais ricas em fósseis da Inglaterra e até do mundo Imagem: Andy Haslam/The New York Times

David Shaftel

04/06/2018 04h00

Bem no comecinho de uma manhã de junho do ano passado, saí às ruas de Lyme Regis usando um par de galochas emprestado e uma capa impermeável comprida, o capuz bem amarrado sob o queixo para me proteger do vento. As rajadas de chuva transformaram as ladeiras da cidadezinha histórica em pequenos córregos e o topo das colinas estava coberto de uma neblina densa, conhecida localmente como Névoa Rousdon. Era alto verão na costa sudoeste da Inglaterra.

Um mergulho no gélido Canal da Mancha estava fora de questão, como também uma corrida pela praia de pedras, mas o tempo deprimente tornava as condições ideais para uma caçada no litoral que cerca Lyme Regis, uma das regiões mais ricas em fósseis da Inglaterra, quiçá do mundo.

Minha mulher, Flora, já se acostumara à novidade de uma praia forrada de relíquias primitivas, afinal cresceu perto dali, em uma antiga casa paroquial antiga. Seu pai era professor de Inglês do Allhallows, colégio interno hoje desativado de Rousdon, aldeia vizinha famosa por emprestar o nome à neblina mencionada anteriormente.

Porém, desde que comecei a ouvir suas aventuras e detalhes dos tesouros que encontrava na praia quando criança, ficara com vontade de experimentar o passatempo. Na caçada matinal que fiz, no ano passado, minha companhia foi o romancista inglês Tariq Goddard, amigo antigo de meu sogro e um de seus melhores alunos, ainda que um tanto rebelde.

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Imagem: Andy Haslam/The New York Times
Lyme Regis, no condado de Dorset, fica no extremo oeste da Costa Jurássica, um trecho de pouco mais de 150 quilômetros de litoral margeado por despenhadeiros declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 2001, por sua história geológica absolutamente incrível, que data de 185 milhões de anos.

As falésias expostas, que revelam camadas de argilito e arenito, são conhecidas como o Blue Lias. Conforme elas vão erodindo, em um processo constante, seus torrões caem, rolando até a praia, principalmente na estação das chuvas, o que revela todo tipo de fóssil --desde pequenos pedacinhos de excremento de dinossauro até esqueletos inteiros de animais pré-históricos gigantescos.

Apesar do tempo horrível, Lyme Regis é tão bela como uma cidadezinha litorânea inglesa deve ser. Encarapitada sobre as rochas que dão para o Canal da Mancha fica a rua principal, enfeitada com bandeirinhas, composta basicamente de construções georgianas em cores pastel que incluem lojas de fósseis, cafés, padarias e doçarias, todas dando para o ponto turístico mais famoso da cidade: o Cobb, cais em forma de ferradura construído no século 14. (Segundo o site municipal oficial, "não há uma explicação satisfatória para o nome".)

Os velhos canhões, que já foram utilizados para proteger a costa contra os invasores franceses, continuam marcando os pontos mais altos da cidade --e embora seja popular entre os turistas, Lyme Regis continua menos valorizada que outros balneários do mesmo estilo, como Brighton e Whitstable, por causa da falta de trem direto de Londres.

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O charme local estava bem evidente no dia da minha visita, mas Goddard lembrava dela, nos tempos do colégio interno, que aproveitava também para tomar um copo de cerveja escondido em uma das tavernas de tema náutico e comprar fitas cassete do Pink Floyd e Happy Mondays na filial da loja de departamentos Woolworth, já desativada.

Ele me brindou com várias histórias dos tempos de colégio, como a do garoto que foi nadar no Canal da Mancha congelado porque aceitara o desafio, tendo que ser resgatado pela Sucursal Marítima da Real Força Aérea, e a do menino que fugira e se escondera nas pedras sob o penhasco, um espaço verdejante formado por antigos deslizamentos da encosta sobre a qual se encontrava a escola até o mar, palco de muitos encontros amorosos adolescentes.

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Coleção de fósseis encontrados em Lyme Regis
Imagem: Andy Haslam/The New York Times
Conta ainda que, quando era estudante, nos anos 90, não havia interesse em agradar o público em geral, quanto mais os turistas. "Não tinha esse desejo de preservação de hoje", afirma. Atualmente, a mentalidade não poderia ser mais diferente. "A cidade está muito mais bem conservada e cuidada. É uma galeria viva, um museu ao ar livre na forma de uma cidadezinha litorânea inglesa", conclui, em um tom de aprovação.

Enquanto Goddard estava mais interessado em ver como a cidade mudara nos 25 anos desde que deixara o colégio, o meu interesse na caça aos fósseis tinha se inspirado em um dos meus romances favoritos: "A Mulher do Tenente Francês", de John Fowles, no qual um dos personagens principais é um cavalheiro caçador de fósseis. A história se passa na Inglaterra vitoriana, período no qual as várias teorias que competiam para explicar o processo evolutivo, ao lado de descobertas espetaculares de fósseis, começavam a definir um desafio feroz e assustador às crenças religiosas prevalentes. Fowles foi o morador mais famoso de Lyme Regis até sua morte, em 2005, e minha mulher, assim como muita gente da região, lembra com entusiasmo da ocasião em que Jeremy Irons e Meryl Streep prestigiaram seu pequeno vilarejo para filmar a adaptação de 1981.

No livro, Fowles afirma que o solo sob Lyme Regis é de uma "natureza altamente fossilífera, e sua mobilidade faz dele uma verdadeira meca para os paleontólogos britânicos. Nestes últimos centos e poucos anos, o animal mais comum em suas praias tem sido o homem, munido do martelo de geólogo". Pois essa parecia ser uma descrição apropriada do dia da nossa visita.

Nosso guia foi Chris Pamplin, recomendado por minha cunhada, que o descreveu somente como "um guru excêntrico que sabe onde estão os melhores fósseis".

Pamplin correspondeu à fama e à descrição: é obcecado por fósseis desde que encontrou um crustáceo do gênero Gryphaea, conhecido como "unha do diabo" enquanto passava férias no litoral do País de Gales, quando tinha sete anos. E pareceu surgiu do nada, no meio da neblina do estacionamento de Charmouth Beach, a leste de Lyme Regis, com uma capa de chuva camuflada, um martelo para pedras amarrado à mochila e óculos à la John Lennon. (Ele também é DJ, especializado, como não podia deixar de ser, em "rock" (rocha).)

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É preciso muito cuidado com que se encontra pelas areias da praia
Imagem: Andy Haslam/The New York Times
Por causa da chuva, Pamplin fez uma rápida introdução no tema fóssil no centro de visitantes que fica na praia. Entre xícaras e mais xícaras de café, explicou por que as rochas marinhas, como as que compõem os penhascos que cercam Lyme Regis, são abundantes em fósseis. "É mais fácil acabar fossilizado quando você morre e cai no fundo do mar, onde acaba coberto de lama, porque ali não há oxigênio. Em terra o ambiente é muito mais propício à erosão, tudo é corroído e se oxida, ou seja, não é ideal", ensina.

E prossegue: "Quando as falésias de argilito ficam encharcadas com a chuva, a lama escorre e é levada pelo mar, mas os fósseis acabam encalhados na areia." Ou seja, ali, principiantes como nós podíamos procurá-los em meio às muitas pedras espalhadas pela praia.

Apesar das condições dramáticas do clima, ou talvez justamente por causa delas, a Costa Jurássica é, ao seu modo, um dos trechos litorâneos mais belos que já vi. (Goddard declarou não saber se a cena deprimente parecia mais pré-histórica ou pós-apocalíptica.) Somente a metade inferior dos paredões escuros era visível, a névoa encobrindo todo o resto. Do estacionamento subia uma trilha gramada que levava ao topo; além dele, via-se uma dúzia de cabinas de madeira em branco e marinho, trancadas a cadeado – as "cabanas de praia", como são conhecidas na Inglaterra –, na areia da cor da ardósia.

Em meio ao cinza do litoral dava apenas para ver as figuras agachadas dos outros caçadores. Pamplin entregou pequenos martelos e óculosde proteção para cada um – mas optamos por não usá-los, pois além de não terem nada de descolados, certamente não havia perigo de machucarmos a vista.

Nessa hora foi impossível não pensar em Mary Anning, a celebrada caçadora vitoriana que, acompanhada de seu cachorro, Tray, encarava os penhascos em desagregação e as marés de Charmouth Beach todos os dias para recolher os belos fósseis que vendia aos banhistas e geólogos para sobreviver.

Apesar de não ter educação formal e ser desprezada pelos cientistas de sua época, praticamente todos homens, Anning foi uma das pioneiras da geologia vitoriana e fez algumas das descobertas paleontológicas mais significativas de então, incluindo o primeiro ictiossauro e o plesiossauro de que se tem notícia – ambos répteis marinhos gigantescos que viveram no período Jurássico. (Dizem que ela também serviu de inspiração para o trava-língua "She sells seashells by the seashore".)

A comunidade científica não batizou as descobertas de Anning com seu nome. Fowles se refere a ela da seguinte forma: "Uma das piores desgraças da paleontologia britânica é que, embora muitos cientistas da época tenham usado com avidez seus achados para se estabelecerem, não há nenhuma criatura que leve o nome anningii".

Pamplin explicou pacientemente que, embora se soubesse que os esqueletos fossilizados de ictiossauro emergissem do espigão subterrâneo do Blue Lias e acabassem expostos por causa dos penhascos em decomposição, teríamos mais chances de encontrar as conchas no formato de balas de revólver de uma criatura chamada belemnite ou os belos amonoides em forma de leque. Ambas são espécies extintas de moluscos cefalópodes pequenos, abundantes em Charmouth Beach.

A maioria do que íamos encontrar só precisava ser visualizada em meio das rochas, mas Pamplin também nos mostrou e disse que era nas pedras em forma de disco que teríamos mais chances de encontrar fósseis de amonoide, além de ensinar como abri-los, batendo o martelinho, com cuidado, ao longo da abertura.

Como não tivemos muita sorte com o equipamento, preferimos fazer a busca simplesmente tentando identificar os fósseis na praia. Antes que nossos olhos se acostumassem a "ver" as pequenas peças em meio à infinidade de pedras, Pamplin já tinha localizado diversos amonoides, que entregava a Goddard e a mim, antes de revelar que eram os seus preferidos. "São as coisas mais lindas de se ver; nunca vou deixar de me surpreender ao encontrá-los na praia", confessou.

Havia algumas pessoas que ele reconheceu como frequentadores assíduos, arriscando-se na escalada sobre os montes de terra amontoados no sopé dos penhascos, resultado dos deslizamentos ainda ativos e perigosos, anunciados por um som baixo e ameaçador, feito um gemido. Goddard e eu preferimos ficar na ponta da praia, onde o mar lambia a costa.

Tivemos mais sorte na busca que demos nas pequenas poças deixadas entre os rochedos pelas ondas. Em cerca de três horas, cada um de nós tinha encontrado vinte fósseis, a maioria belemnites e alguns belos amonoides, mas também algumas pedras com cruzes, os crinoides, ou lírios-do-mar, criatura ainda comum que, quando viva, lembra um tufo de flores.

Nossas roupas estavam úmidas e as costas doíam, mas estávamos empolgados pela visita a Charmouth Beach em um dia tão generoso. Pamplin concordou. "Tem dias bons e ruins; esses últimos têm sido excelentes, na verdade." Entretanto, qualquer que seja o tesouro encontrado, a esperança é sempre de achar algo maior. "Uma coisa é certa: não vamos ficar sem fósseis", afirma, apontando para o Blue Lias. "Ele vai até Yorkshire."

O sol saiu e o ar esquentou enquanto voltávamos para Lyme Regis para almoçar e dar uma volta. Comemos sanduíche de carne de caranguejo em um banco público antes de sairmos para garimpar as lojas de fósseis e experimentar o fudge, tipo de ganache de chocolate que é a especialidade local. Satisfeitos, descemos ao cais, para o Cobb e o quebra-mar que oferecia proteção para mais de cem barcos de pesca e recreação.

Jane Austen visitou Lyme Regis duas vezes e desenvolveu ali uma cena essencial de seu último romance completo, "Persuasão", no qual uma das personagens principais, Louisa Musgrove, cai do Cobb durantes as férias que passa na cidade, machucando-se gravemente. Várias adaptações para a TV foram filmadas no local que até hoje representa uma subida perigosa e escorregadia. A cidade também recebe uma peregrinação anual em homenagem à escritora.

Aliás, a definição que dá do caminho rumo à praia poderia muito bem se aplicar ao que fizemos hoje. Ela descreve as ruas de Lyme Regis como "quase correndo rumo ao mar" e "o caminho para o Cobb, acompanhando a pequena e bela baía que, na alta estação, se vê cheia de vida graças às 'máquinas de banho' e ao público; o próprio belvedere, suas maravilhas antigas e as melhorias recentes, com o belíssimo perfil de penhascos se destacando a leste da cidade, é disso tudo que os olhos do estranho sentirão falta".

No alto verão não há mais as tais máquinas, comuns no século 19, para satisfazer à etiqueta de Lyme Regis. Semelhante a uma minúscula cabine sobre rodas de charrete, elas eram populares entre os banhistas, especialmente as mulheres, que queriam dar um mergulho e, ao mesmo, se proteger dos olhares lascivos. Entravam então na engenhoca, onde vestiam uma roupa de banho e eram levadas para o meio do mar, onde podiam mergulhar sem serem incomodadas. O recurso é símbolo dos áureos tempos da cidade como balneário de verão nos séculos 18 e 19.

Mesmo quando o tempo não colabora, o porto consegue reter um charme todo especial, graças às cabines em tons pastel, a areia relativamente fofa e os pubs e restaurantes despojados.

No trecho rochoso que se estende atrás do Cobb, até o caçador mais preguiçoso pode encontrar amonoides enormes, belíssimos, muito maiores que os que encontramos em Charmouth Beach, espalhados em meio às pedras que há ali. São relíquias adoráveis, lembretes de que, como Austen escreveu em "Persuasão", "é preciso ser um estranho muito estranho para não perceber o charme do ambiente de Lyme". 

Dinossauro - Andy Haslam/The New York Times - Andy Haslam/The New York Times
Chris Pamplin ensina criança como caçar fósseis
Imagem: Andy Haslam/The New York Times

Se você for

Em Lyme Regis, ficamos no Hix Townhouse, que oferece oito quartos bem aconchegantes. (1 Pound St.; hixrestaurants.co.uk/restaurant/hix-townhouse.) Não conta com restaurante, mas uma cesta de piquenique recheada com um café da manhã gourmet completo apareceu à minha porta um dia. Mark Hix, o chef famoso e dono da propriedade também comanda o soberbo Hix Oyster & Fish House, melhor casa da cidade (Cobb Road; hixrestaurants.co.uk/restaurant/hix-oyster-fish-house).

Chris Pamplin se oferece para acompanhar caçadas matinais, mas os horários dependem das marés (fossilwalks@hotmail.co.uk; fossilwalks.com).

O pequeno Museu de Lyme Regis conta com uma ala nova, a Mary Anning Wing. (Bridge Street; lymeregismuseum.co.uk.) Entretanto, seus achados mais significativos estão no Museu de História Natural de Londres. (Cromwell Road, Londres; nhm.ac.uk.)

O que ler

Não recomendo a viagem a Lyme Regis para caçar fósseis sem a leitura de "A Mulher do Tenente Francês", de John Fowles. Ele é também o autor de um volume fino, mas muito útil, chamado "A Short History of Lyme Regis". A biografia vibrante que Shelley Emling escreveu sobre Mary Anning, "The Fossil Hunter", também é uma boa pedida. Há várias cenas importantes em "Persuasão", de Jane Austen, que se passam em Lyme Regis.

* David Shaftel vive em Nova York; é escritor e editor da Racquet, revista trimestral sobre tênis.