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Lenda sobre xarope de freiras protege salamandra ameaçada de extinção

Irmã Ofelia Morales Francesco inspeciona uma achoque da colônia de mais de 300 espécimes no convento de Pátzcuaro, no México - Adriana Zehbrauskas/The New York Times
Irmã Ofelia Morales Francesco inspeciona uma achoque da colônia de mais de 300 espécimes no convento de Pátzcuaro, no México Imagem: Adriana Zehbrauskas/The New York Times

Geoffrey Giller

Em Pátzcuaro (México)

09/08/2018 04h00

No topo da colina mais alta da cidade de Pátzcuaro, no México, à beira de um lago, fica a Basílica de Nuestra Señora de la Salud, construída no século 16, com paredes caiadas e colunas de pedra vermelha.

Em uma rua na esquina da basílica, uma porta de madeira emoldurada por pedras esculpidas e marcada com uma Cruz de Fleuri fica aberta das 9h às 14h e das 16h às 18h. "Nós rezamos por você", diz uma placa em espanhol.

Lá dentro, a sala está quase vazia e escura, com apenas uma janela de madeira e três portas fechadas. Atrás delas há um convento, lar de duas dúzias de freiras da ordem dominicana.

Mas ele também abriga um número ainda maior de residentes muito inesperados: uma próspera colônia de salamandras ameaçadas de extinção. Os cientistas as chamam de Ambystoma dumerilli, mas as freiras e todos os outros em Pátzcuaro as chamam de "achoques".

Cuidadas pelas freiras, cerca de 300 delas vivem em aquários de vidro e banheiras de esmalte branco em um longo corredor e dois quartos adjacentes ao convento. As religiosas se sustentam parcialmente vendendo um xarope contra a tosse, feito da pele das salamandras.

Mas as achoques da basílica são cada vez mais valiosas por outra razão.

Elas só são encontradas no lago Pátzcuaro, e fora do convento o número de espécimes diminui rapidamente. Há colônias menores em cativeiro em outros lugares de Pátzcuaro, mas nenhuma tão grande quanto a da basílica, ou seja, as perspectivas das salamandras na natureza podem ser críticas.

"É por isso que achamos que as freiras serão vitais no futuro", disse Gerardo Garcia, curador e perito em espécies em extinção do Zoológico de Chester, na Inglaterra.

Comparadas a outras espécies, elas são enormes --as maiores podem chegar a 30 cm de comprimento--, mas o que mais impressiona são suas guelras, filamentos exuberantes avermelhados que emolduram a cabeça como uma juba e ondulam suavemente na água.

Achoque no centro de pesquisa em Pátzcuaro, no México - Adriana Zehbrauskas/The New York Times - Adriana Zehbrauskas/The New York Times
Achoque no centro de pesquisa em Pátzcuaro, no México
Imagem: Adriana Zehbrauskas/The New York Times

Na basílica, sua principal cuidadora é a irmã Ofelia Morales Francisco. Quando estive por lá, ela me recebeu, assim como a outros visitantes, em seu hábito branco, com o véu preto engomado e bem preso e um rosário de pérolas azuis.

Quando lhe perguntavam algo, às vezes respondia apenas com um sorriso, mas, ao se aproximar das achoques, ela se abriu, orgulhosa de mostrar seus anfíbios.

Os tanques são impecáveis, cada um com um oxigenador borbulhante feito de metade de uma garrafa plástica de refrigerante cheia de pedras e tecido enrolado. Em uma caixa de vidro acima deles, um menino Jesus vestido de médico as vigia.

Xaope - Adriana Zehbrauskas/The New York Times - Adriana Zehbrauskas/The New York Times
O xarope feito por freiras com a pele das salamandras
Imagem: Adriana Zehbrauskas/The New York Times

As irmãs costumavam fazer seu xarope usando salamandras coletadas no lago. Quando os animais começaram a desaparecer, as freiras estabeleceram a colônia no convento porque estavam preocupadas em perder seu remédio.

"O que fazer, parar de produzir o xarope?", disse a irmã Ofelia em espanhol. Mas, por fim, ela e outras freiras também perceberam a importância de conservação em seu trabalho.

"Trata-se de proteger uma espécie da natureza. Se não trabalharmos para cuidar dela, vai desaparecer da criação", afirmou.

Como as axolotes, suas primas extravagantes e mais conhecidas, as achoques passam a vida inteira debaixo d'água. Quando se tornam adultas, mantêm as guelras externas que a maioria das salamandras têm apenas na fase de larva aquática.

Como o número de pessoas que vive ao redor do lago Pátzcuaro, um dos maiores do México, aumentou constantemente ao longo dos séculos, a qualidade da água sofreu.

O escoamento exacerbado pelo desmatamento transporta sedimentos e poluição para o lago. O esgoto não tratado ainda é despejado na água, e um jacinto invasor se espalha ao longo de suas margens. Os pastos chegam até as bordas pantanosas do lago.

Para piorar as coisas, o achigã foi intencionalmente introduzido no Pátzcuaro na década de 1930; em 1974, foi a vez da carpa, muito mais destrutiva. Os dois peixes comem os ovos e as larvas das achoques.

Entre 1982 e 2010, o lago, que já era raso, diminuiu para 4 metros, perdendo um quarto de seu volume total, por causa do declínio da precipitação e do crescente escoamento. Vários esforços para reabilitar o Pátzcuaro tiveram apenas sucesso limitado.

As achoques não são as únicas salamandras mexicanas em apuros: das 17 espécies em seu gênero encontradas no México, 12 estão listadas como ameaçadas ou criticamente ameaçadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza.

Em todo o mundo, as salamandras enfrentam inúmeras ameaças, desde a perda de habitat até o comércio ilegal. Na Europa, um novo fungo tem matado esses animais. 

Aquarios - Adriana Zehbrauskas/The New York Times - Adriana Zehbrauskas/The New York Times
Irmãs Rosa Cortez e Ofelia limpam os aquários onde vivem as achoques no convento
Imagem: Adriana Zehbrauskas/The New York Times

No lago Pátzcuaro, os pescadores pescavam e comiam achoques desde antes de os espanhóis chegarem ao México. "No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, as que eram capturadas aqui acabavam empilhadas no mercado de peixe da cidade", recorda-se Brad Shaffer, professor de biologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que estuda as salamandras.

Mas o número de achoques começou a flutuar descontroladamente nos anos 80 e caiu em 1989. Em 1985, um frade sugeriu que as freiras iniciassem sua própria colônia porque o lago estava se deteriorando, segundo a irmã Ofelia.

Só em 2000 elas conseguiram sua própria comunidade próspera de salamandras no convento, mas produzem o xarope há quase um século.

"As pessoas têm fé nele porque são as freiras que os fazem", disse Dolores Huacuz, especialista em anfíbios da região e professora universitária aposentada. A lenda local diz que as irmãs receberam a receita secreta de uma jovem purépecha, um dos povos indígenas que viviam nesta região antes da colonização espanhola.

Seu xarope curou uma das irmãs, fortalecendo seus pulmões e acabando com sua anemia. Aquela jovem, de acordo com a história, era a Virgem Maria disfarçada.

Se a receita do xarope para a tosse chegou às freiras através da intervenção divina ou não, não há dúvida de que o povo purépecha comia achoques e as usava na medicina muito antes da chegada dos europeus e do catolicismo, de acordo com Tzintia Velarde Mendoza, coordenadora de projetos da Faunam, grupo de conservação da vida selvagem que estuda a história dessa espécie.

O nome achoque vem de uma palavra purépecha, "achójki", possivelmente derivada da palavra para lama.

'Ordem religiosa não é obstáculo para progresso da ciência'

Garcia, do Zoológico de Chester, está trabalhando com uma equipe no México para pesquisar o lago Pátzcuaro na tentativa de descobrir quantas salamandras ainda existem na natureza e onde vivem no lago.

"Iniciar programas de reintrodução parece muito legal na mídia, mas essa não é realmente a melhor maneira de agir", afirmou.

Ainda há achoques selvagens no lago, segundo Garcia, incluindo uma pequena população na parte norte. Os pescadores disseram à equipe que ocasionalmente avistam as salamandras.

Mas, como a população vem diminuindo, o mesmo acontece com sua diversidade genética --e é aí que a próspera colônia do convento pode, um dia, fazer uma enorme diferença, supondo-se que seja geneticamente diversa.

"São 300 indivíduos, uma criação grande e muito saudável; se eles forem relativamente pouco aparentados, podemos trabalhar com ela", disse Shaffer.

No momento, não há planos para levar as achoques do convento para o lago. "Antes que isso aconteça, as questões da qualidade da água devem ser abordadas e a diversidade genética da colônia das freiras, avaliada. O trabalho em ambas está em curso", afirma Garcia.

Na sala onde as freiras vendem seu xarope, um mural na parede retrata o lago com salamandras nadando em águas límpidas. As mãos brilhantes de uma freira seguram uma delas ao lado de uma imagem da Virgem Maria.

"Ser parte de uma ordem religiosa como a nossa não é um obstáculo para o progresso científico", disse a irmã Ofelia.

"A ordem é dedicada à pesquisa de conhecimento teológico e científico em benefício da humanidade", acrescentou. Parte de sua missão é "trabalhar em prol de uma consciência mais humana, cheia de justiça e amor pela natureza".

Outro mural ostenta o nome oficial da Unidade de Gestão para a Conservação da Fauna das freiras, registrado no governo mexicano: Jimbani Erandi, que, na linguagem do povo indígena purépecha, significa "novo amanhecer".