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A Cara da Democracia

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A cara da democracia brasileira

15.mar.2020 - Aos gritos de mito, Bolsonaro sob a rampa do Palácio do Planalto após ter contato com apoiadores em ato a seu favor em Brasília - Felipe Pereira/UOL
15.mar.2020 - Aos gritos de mito, Bolsonaro sob a rampa do Palácio do Planalto após ter contato com apoiadores em ato a seu favor em Brasília Imagem: Felipe Pereira/UOL

Colunista do UOL

25/03/2021 04h00

Leonardo Avritzer*

As democracias já morreram no passado por meio de golpes de estado desferidos por atores externos ao sistema político, em especial militares. Mas hoje elas são desafiadas por uma morte lenta provocada de dentro pelos governantes. Jair Bolsonaro é o terceiro outsider da direita brasileira que chega à presidência nos últimos 60 anos. Jânio Quadros e Fernando Collor o antecederam. Nenhum dos dois completou seus mandatos e ambos produziram fortes crises com suas atitudes.

Assim como Jair Bolsonaro, eles também se elegeram destacando a luta contra a corrupção e tentando traçar uma relação entre esquerda e corrupção no governo. Porém, o atual presidente possui uma diferença fundamental em relação aos outros dois: o bolsonarismo tem traços maiores de movimento do que de forma de governo e o presidente tem atuado, desde o início da pandemia, na tentativa de acentuar o lado movimentalista do bolsonarismo, tal como assistimos na sua ida a Praia Grande e a Santa Catarina no verão de 2021. Jair Bolsonaro tensiona a democracia no Brasil como ela jamais foi tensionada desde 1985, o ano da redemocratização.

O bolsonarismo como movimento agride governadores, ironiza aqueles que fazem quarentena, ignora os grandes dramas da população brasileira como as mortes em Manaus no início do ano. Implantou uma bagunça tal na gestão da pandemia que torna o Brasil o caso de maior fracasso no enfrentamento à covid-19 segundo diversas agências internacionais. O bolsonarismo exime-se da responsabilidade de governar entendida como o ato metódico de organizar políticas públicas e sente-se confortável em jogar nos governadores e prefeitos a culpa pelo fracasso no enfrentamento da pandemia. Esse é o maior elemento da crise do governo Bolsonaro, que se acentuou nos primeiros meses de 2021: a falta de uma política federal em relação à pandemia.

Jair Bolsonaro governa sob o signo da morte. Ele não se preocupou em passar o vírus da covid para outros brasileiros em suas aparições públicas sem máscara. Ele não se preocupou em produzir uma política viável para salvar da asfixia aqueles brasileiros em Manaus cuja vida dependia de algumas ações viáveis do Ministério da Saúde. Não se preocupa em receitar a hidroxicloroquina, um remédio com fortes efeitos colaterais que já mataram muitos brasileiros. Ele não se preocupa em não (?) aumentar a oferta de vacinas se isso puder beneficiar o seu possível adversário na eleição do ano que vem, o governador de São Paulo João Dória. Em todos esses casos, ele apenas repete uma frase sem emoção e sem conteúdo: eu lamento, como se ele não tivesse mais nada a fazer em relação à tragédia que se abate sobre o nosso país.

Para além disso, o governo Bolsonaro tem o potencial de apontar para um segundo tipo de morte, a morte institucional da democracia brasileira. O Brasil construiu instituições democráticas relativamente fortes entre 1994 e 2014, mas estas vivem um desgaste diário que está levando a sua morte lenta. Se é verdade que tivemos alguns momentos importantes nos quais chamados do presidente à intervenção militar ou ao fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) receberam uma resposta à altura, também é verdade que instituições democráticas que são atacadas diariamente ou permanentemente não podem ser consideradas fortes.

Ao mesmo tempo, o Brasil assiste bestializado (para usar uma famosa frase de Aristides Lobo sobre a Proclamação da República) ao festival de ilegalidades, manipulações e atentados ao estado de direito produzidos pela Operação Lava Jato e pergunta-se como foi possível que um juiz de primeira instância manipulasse o STF e levasse a tal distorção a ideia de justiça. Todas essas questões levam à pergunta: qual é hoje a cara da democracia brasileira?

Este espaço servirá para cientistas políticos e estudiosos da democracia no Brasil apresentarem dados de pesquisas de opinião pública sobre como os brasileiros veem a democracia, as instituições políticas, o governo Bolsonaro e a pandemia. Iremos também analisar os principais movimentos das forças políticas no Brasil rumo à eleição de 2022. Com base em dados, avaliaremos o estado da nossa combalida democracia. Sabemos que os brasileiros estão oscilando em suas opiniões em relação à democracia e sabemos que um núcleo de aproximadamente 30% da população aceita o autoritarismo e concorda com o fechamento do Congresso e do STF. Quem são esses brasileiros?

Em segundo lugar, iremos contribuir para uma análise do bolsonarismo e sua relação com o eleitorado no país. Como diagnosticar o bolsonarismo? Qual é a sua proposta de governo? Como ele, até agora, operou no campo das políticas públicas? Novamente com base em pesquisas e informações científicas, discutiremos a degradação da capacidade de governar e elaborar políticas públicas no Brasil neste momento. Iremos também analisar o movimento de duas forças centrais na política brasileira: o centro democrático e o assim chamado "centrão" forças centrais na articulação no congresso e na elaboração das chapas presidenciais para 2022. A relação destas forças com associações civis e a maneira como o campo centrista irá se posicionar em relação às diferentes alternativas terá impacto decisivo nos caminhos da democracia brasileira.

Se a democracia está em crise porque está sendo corroída por dentro, o que fazer para recuperar a confiança da população brasileira na democracia e nas instituições que ela precisa para funcionar? Os diferentes movimentos, seja na direção de uma restauração mais forte das práticas democráticas seja na tentativa do bolsonarismo de continuar na sua tentativa de destruir as instituições democráticas no nosso país, serão seguidos e analisados nesse espaço.

* Leonardo Avritzer é graduado em Ciências Sociais (1983) e mestre em Ciência Política (1987) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research (1993) e pós-doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (1998-1999) e (2003). É professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.