O Oscar vai para as famílias dos desaparecidos na ditadura
O sucesso do filme 'Ainda Estou Aqui', longa de Walter Salles triplamente indicado ao Oscar, baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, trouxe impacto direto para as famílias de desaparecidos na ditadura militar.
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou que os cartórios de todo o país mudem a certidão de óbito de gente que foi morta pela ditadura.
No campo da causa mortis, antes se lia "Lei 9.140", aquela que reconhece a figura do morto em razão de atuação política na ditadura.
Agora, o documento deverá informar que o óbito não decorreu de causa natural, mas sim de forma violenta, causada pelo Estado, no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política.
Dos 434 mortos e desaparecidos pela ditadura catalogados pela Comissão Nacional da Verdade, cerca de 30 já puderam mudar as certidões, então 400 famílias finalmente darão esse passo — que não encerra a luta, mas é um passo.
Uma das famílias é a de Mário Alves, jornalista baiano que ajudou a fundar e dirigir o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). A história dele, como a de diversas vítimas da perseguição, tem paralelos com a de Rubens Paiva, o ex-deputado cassado e morto pela ditadura, relatada em "Ainda estou aqui".
Talvez o principal paralelo tenha sido o protagonismo que a sua viúva, Dilma, e a filha, Lucinha Alves, assumiram depois do seu assassinato, em 1970. Como Eunice, Clarice Herzog e as mulheres vítimas sobreviventes. Como disse Marcelo Rubens Paiva, essa é a história de mulheres heroínas.
Segundo Léo Alves, neto de Dilma e Mário Alves e filho de Lucinha, "esta é uma luta feminina. Elas contagiaram a sociedade civil na luta pela anistia ampla geral e irrestrita, abertura dos documentos dos porões da ditadura".
Mário e Dilma se conheceram em um congresso do Partidão, o Partido Comunista, em 1946 no Rio de Janeiro. Ela morava no interior do estado e militava pela reforma agrária. Ele vivia na Bahia e combatia a ditadura.
Namoraram durante seis meses por correspondência até decidirem se casar. Ele mandou uma procuração e ela registrou a união em cartório. O casal se mudou para o Rio e, em 1947, mesmo ano em que o Partido Comunista foi posto na ilegalidade, nasceu a filha, Lúcia.

A vida da família é uma vida em fuga. De 1947 até 1970, eles moraram em 40 lugares em diferentes, cidades e estados. Queimavam fotos e documentos a cada mudança. Não deixavam rastro.
Em 16 de janeiro de 1970, moravam no bairro da Abolição, no subúrbio do Rio. Às 20h daquela noite quente de verão carioca, Mário Alves se despede da esposa e sai de casa sem dizer aonde ia. Não leva consigo nada, nem mesmo os documentos falsos. Estava indo "fazer um ponto", encontrar um companheiro no jargão dos militantes. Nunca mais voltou.
Levado aos porões, foi torturado barbaramente. Outros militantes sequestrados testemunharam a cena e relataram depois o que viram e ouviram. Espancado com os métodos mais cruéis, não entregou o endereço da família. Sofreu empalamento e não resistiu, uma causa mortis desumana até agora descrita com a expressão "Lei 1.140" em sua certidão de óbito.
Dilma logo entende o que aconteceu e começa um périplo em busca de informações e da localização do corpo do marido. Bate em porta de quartel, de político e general. Manda carta para Deus e o mundo, até no Uruguai.
Em 1981, uma juíza reconheceu a morte e desaparecimento de Mário Alves, no primeiro caso atestado pela União na ditadura no Brasil.
Dilma e Lucinha ficaram ainda um tempo na mesma casa. A saúde da mãe se fragilizou, a filha se casou em 1974, e elas se mudaram juntas para NIterói (RJ), no bairro da Boa Viagem, onde Léo e Lucinha moram ainda hoje.
"Sigo fazendo exatamente o que elas fizeram", ele contou. "Vou a Brasília, cobro a abertura dos documentos, a reinterpretação da Lei de Anistia." A visibilidade que "Ainda Estou Aqui" trouxe à causa gera expectativa.

A mudança na certidão de óbito "foi avanço positivo, mas não é tudo", afirma Leo Alves. "Não sabemos onde ele foi enterrado."
Ele comemora as indicações ao Oscar e o Globo de Ouro conquistado por Fernanda Torres por sua atuação no filme como Eunice. "Bilhões de pessoas acompanham, no mundo inteiro. É uma oportunidade extraordinária de o Brasil mostrar o que se passou aqui na ditadura. Mostrar para fora e, se bobear, principalmente, para dentro do país."
Podcast A Hora, com José Roberto de Toledo e Thais Bilenky
A Hora é o podcast de notícias do UOL com os jornalistas Thais Bilenky e José Roberto de Toledo. O programa vai ao ar todas as sextas-feiras pela manhã nas plataformas de podcast e, à tarde, no YouTube. Na TV, é exibido às 16h. O Canal UOL está disponível na Vivo TV (canal nº 613), Sky (canal nº 88), Oi TV (canal nº 140), TVRO Embratel (canal nº 546), Zapping (canal nº 64) e no UOL Play.
Escute a íntegra nos principais players de podcast, como o Spotify e o Apple Podcasts já na sexta-feira pela manhã. À tarde, a íntegra do programa também estará disponível no formato videocast no YouTube. O conteúdo dará origem também a uma newsletter, enviada aos sábados.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.