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Reforma do Código Civil propõe 'tirar a culpa' de advogados

A proposta de reforma do Código Civil brasileiro, capitaneada pelo senador Rodrigo Pacheco, tem recebido críticas de especialistas por suas diversas inconsistências e pelo risco de aumentar a insegurança jurídica no país. Entre os pontos mais polêmicos está a proposta de tratamento diferenciado para advogados em relação a outros profissionais liberais, isentando-os de responsabilidade por culpa em caso de erro.

O tema é um dos destaques do episódio desta semana do A Hora, podcast de notícias do UOL com os jornalistas Thais Bilenky e José Roberto de Toledo, disponível nas principais plataformas. Ouça aqui.

Na terça-feira, Pacheco realizou uma cerimônia que contou com a presença dos três poderes, incluindo os ministros do STF Alexandre de Moraes e Flávio Dino, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara, Hugo Motta, e o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. O evento marcou o lançamento de um livro organizado por Pacheco com artigos de juristas membros da comissão, já discutindo as mudanças propostas.

Segundo especialistas ouvidos, como a civilista Judith Martins Costa e o professor da USP Cristiano Zanetti, o texto proposto contém "conceitos pouco burilados" e "termos que não são comuns no Código Civil", como "liberdade cognitiva", "melhoria cerebral", "práticas enviesadas a partir de dados cerebrais", "situação jurídica mental", "auditabilidade" e "explicabilidade". A crítica aponta que esses termos acabam "deixando a coisa um pouco vaga demais" e sujeita a interpretações divergentes.

Um dos pontos mais controversos da reforma é o artigo 953A, que estabelece responsabilidade diferente para advogados em relação aos demais profissionais liberais. Enquanto médicos, arquitetos e outros profissionais continuariam respondendo por culpa (quando causam dano mesmo sem intenção), os advogados passariam a responder apenas por dolo ou fraude (quando há intenção deliberada).

Quando questionado sobre essa diferenciação, Flávio Tartuce, relator geral da comissão de juristas, justificou que hoje só juízes e promotores respondem por dolo e fraude e que, como os advogados também operam no sistema de justiça, têm que ter o mesmo benefício. O relator chegou a afirmar que a medida seria facilmente aprovada porque a maioria do Congresso, na Câmara e no Senado, é formada por advogados, declaração que depois tentou negar.

Outro ponto polêmico é o artigo 1609-A, que propõe que homens que se recusarem a fazer exame de DNA para confirmar paternidade seriam automaticamente registrados como pais da criança. Segundo Dierle Nunes, membro da comissão, essa é uma das maiores controvérsias desse texto, enquanto Tartuce defende que a medida representa uma revolução para proteger filhos e mães.

Já o artigo 936A estabelece que o proprietário de uma coisa não será responsabilizado por danos causados por ela se demonstrar que foi usada contra sua vontade. Um exemplo citado por Judith Martins Costa seria o caso de um filho menor de idade que pega o carro do pai sem autorização e causa danos. Pela nova regra, o pai poderia se eximir de responsabilidade alegando que não autorizou o uso do veículo.

Tartuce argumenta que o artigo foi criado especificamente para regular tecnologias como drones. "Se um drone cai e causa prejuízo, o dono não teria que pagar indenização porque não queria que caísse", exemplifica. No entanto, especialistas questionam a clareza do texto, que poderia levar a interpretações muito diferentes da intenção original.

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O artigo 944-A também gerou controvérsia ao propor que juízes possam aplicar sanção pecuniária de caráter pedagógico em casos graves. Zanetti critica que "não está claro quando vai dar, quando não vai dar, que casos graves são passíveis de uma multa e em qual valor". Além disso, segundo o texto proposto, essa sanção iria para fundos públicos, como o Ministério Público, e não para a pessoa lesada.

"Ao ler o texto, cabe A e cabe o contrário de A", afirma Zanetti, alertando que isso pode causar problemas sérios na vida das pessoas. Segundo ele, no limite, pode ter um juiz com uma visão muito conservadora que queira aplicar uma sanção de caráter pedagógico numa pessoa por motivos discriminatórios.

Em defesa da reforma, Tartuce argumenta que o Código Civil atual tem mais de 50 anos, contando a partir do momento em que começou a ser proposto nos anos 1970, e está totalmente ultrapassado, sendo urgente uma regulamentação para colocar o direito civil no século XXI. Críticos, no entanto, lembram que os códigos são feitos para durar pelo menos um século, citando como exemplo o Código Napoleônico de 1804, que permanece em vigor na França.

A rapidez com que as mudanças estão sendo aprovadas também preocupa. Em uma reunião da comissão de juristas, quando questionado se o texto em votação era o mesmo distribuído anteriormente, o ministro Luiz Felipe Salomão, presidente da comissão, respondeu: "Não, não, não. Ela já evoluiu bastante, fruto dessa emenda consensual."

Segundo a comissão, a expectativa é que o projeto seja aprovado em até dois anos, após tramitação no Senado e na Câmara. Especialistas, no entanto, alertam para a falta de um estudo de impacto econômico das mudanças propostas, especialmente na área de contratos, o que poderia causar o que Judith Martins Costa chama de "hecatombe econômica".

Podcast A Hora, com José Roberto de Toledo e Thais Bilenky

A Hora é o podcast de notícias do UOL com os jornalistas Thais Bilenky e José Roberto de Toledo. O programa vai ao ar todas as sextas-feiras pela manhã nas plataformas de podcast e, à tarde, no YouTube. Na TV, é exibido às 16h. O Canal UOL está disponível na Vivo TV (canal nº 613), Sky (canal nº 88), Oi TV (canal nº 140), TVRO Embratel (canal nº 546), Zapping (canal nº 64) e no UOL Play.

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