Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
a morte de Moïse não tem relação com a política! Será?

O espetáculo da morte do jovem Moïse Kabagambe exige ao menos um instante de reflexão. Falo de um jovem negro de 24 anos, natural do Congo que veio ao Brasil para fugir do ambiente perigoso e hostil que sua pátria se tornara, mas, todas as qualificações poderiam ser suprimidas. Refiro-me, antes de tudo, a uma pessoa, gente como a gente, pronto para sentir dor, sofrer, implorar pelo direito de continuar vivo.
Essa tragédia possui outros atores, inúmeros coadjuvantes que desejam protagonismo na vida real. São outras pessoas que se sucedem em variadas agressões contra o dominado Moïse. As terríveis imagens das câmeras de segurança sugerem que os brasileiros criaram uma forma criminosa bárbara: o homicídio por adesão, onde todos que quiserem podem agir um pouco e ainda assim permanecer com a "consciência limpa" por não crer que produziram o resultado.
Há ainda os figurantes, pessoas que estavam no palco do crime e que assistiram a tudo inertes, não cogitaram impedir a evolução das agressões, não manifestaram uma palavra de discordância, um olhar contestador, alguns, naturalizando seu papel, compraram uma bebida, pagaram a conta, pediram um petisco.
Pronta a obra, cabe a cada um de nós, o público, analisar o resultado criticamente e estabelecer um juízo de valor sobre o conteúdo dos vídeos. Refleti sobre o desempenho de cada um dos atores e tenho algumas conclusões a compartilhar.
Vendo os agressores, lembrei imediatamente de Hannah Arendt que, verificando o comportamento dos nazistas, desenvolveu o conceito da banalidade do mal. A filósofa constatou que muitos membros do partido realizavam as ações mais cruéis como parte do trabalho, eram capazes de matar dezenas de pessoas durante o dia, mas a noite, agiam como pais devotados. A maldade não é tão sofisticada, pode emergir de qualquer lugar e qualquer momento.
O Brasil moderno elevou este conceito a outro patamar, a maldade passa uma possibilidade, uma habilidade que pode ser utilizada a qualquer momento e logo em seguida a vida continua em seu ritmo como se nada houvesse ocorrido. Não duvido que os agressores de Moïse possam ter jantado tranquilamente com suas famílias naquela noite.
A plateia inerte me fez recordar as lições de Zygmunt Bauman e suas explicações sobre o comportamento das pessoas na modernidade líquida, o excesso de individualismo, a indiferença com os problemas alheios, a insensibilidade com a dor e sofrimento que os outros possam estar sentindo.
Por fim, Moïse personifica a necropolítica de Achille Mbembe, a ideia de como o comportamento do Estado e de seus representantes pode estimular a morte na sociedade, especialmente, a eliminação de todos aqueles que são vistos como indesejáveis. Estamos há algum tempo imersos nessa realidade, somos diária e continuamente alimentados por eficazes pílulas de ódio.
É preocupante perceber que nesse teatro do absurdo, todos os papéis são intercambiáveis, a qualquer momento a plateia pode ser conduzida ao centro do palco, estando apta a desempenhar qualquer dos papeis disponíveis, inclusive, matar e morrer.
Então, como podemos nos afastar disso? A política, que muitos orgulham-se em desprezar, é o espaço mais eficiente para a construção de uma sociedade minimamente civilizada em que se respeitam os direitos humanos em todos os sentidos.
Falo do direito de Moïse viver, do direito de os agressores e suas famílias possuírem emprego, saúde e condições dignas de vida, do direito de a plateia inerte possuir segurança, do direito de o dono do quiosque prosperar. Afinal, o respeito a esses direitos e outros mais é que faz com que uma sociedade possa ser chamada de civilizada e aumentar a chance de não precisarmos voltar a avaliar este tipo de espetáculo macabro.
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