Amanda Cotrim

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Reportagem

Ele foi raptado bebê pela ditadura argentina; hoje acha desaparecidos

No último mês, a organização das Avós da Praça de Maio anunciou a restituição de dois netos sequestrados pela ditadura civil-militar argentina (1976-1983), de número 138 e 139, dos cerca de 500 bebês raptados durante os anos de repressão.

Um dos 139 netos restituídos ao longo dos quarenta anos da democracia argentina é Manuel Gonçalves, de 48 anos.

Em novembro de 1976, na cidade de San Nicolas, interior de Buenos Aires, ele foi separado para sempre de sua mãe, Ana Maria del Carmen Granada, quando tinha apenas cinco meses de vida.

No dia 19 daquele mês, as forças de repressão bombardearam a casa onde Ana Maria, na época com 23 anos, vivia com seu bebê, um casal de amigos —Omar Amestoy e María del Carmen Fettolini— e seus filhos, María Eugenia e Fernando, de 5 e 3 anos.

Manuel, cujo pai já havia sido assassinado pela ditadura naquele mesmo ano, foi o único sobrevivente daquela execução. "Sobrevivi graças a minha mãe, que me escondeu em um guarda-roupa', contou em entrevista ao UOL.

Ana Maria del Carmen Granada, mãe de Manuel Gonçalves, morta pela ditadura argentina
Ana Maria del Carmen Granada, mãe de Manuel Gonçalves, morta pela ditadura argentina Imagem: Arquivo da Associação Avós da Praça de Maio

Após reconstruir sua história, Manuel escolheu se engajar na busca por outros bebês desaparecidos e pessoas que nasceram nas prisões da ditadura, para restituir suas identidades.

Sua missão está atrelada ao trabalho que atualmente exerce na Conadi (Comissão Nacional pelo Direito à Identidade), um órgão dependente da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina, responsável por garantir o cumprimento da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças ao que tange o direito à identidade.

"A restituição da identidade é um processo que te leva a lugares pelos quais você nunca teria passado", afirmou.

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Nesse processo intenso e complexo de investigação de sua história, Manuel descobriu que era meio irmão por parte de pai do baixista da famosa banda de reggae/rock argentina Los Pericos, Gastón Gonçalves.

"Antes de descobrir a minha origem, eu tinha estado pelo menos em três oportunidades no mesmo ambiente que o meu irmão, acompanhando a banda, sem saber', revelou.

O sequestro

Após sobreviver ao massacre, os agentes de repressão levaram o filho de Ana Maria Granada e Gaston Gonçalves a um hospital da cidade de San Nicolás, que permaneceu internado por três meses. Recuperado, Manuel foi sequestrado pelos militares que o levaram a um orfanato a milhares de quilômetros dali.

Desaparecer com aquele bebê foi uma tentativa de apagar os rastros daquela história. "Afinal, não seria difícil que aquele bebê mais tarde fosse reconhecido numa cidade que ficou marcada pelo atentado nacionalmente conhecido como "o massacre da rua Juan B. Justo", contextualizou.

Adoção ilegal

Aos cinco anos, Manuel soube pela sua mãe que era filho adotivo. Mesmo assim, nunca desconfiou de sua verdadeira origem. "Ao contrário, eu imaginei que minha família biológica tinha me rejeitado, que ninguém queria saber de mim".

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Mas, com o fim da ditadura, descobriu-se que sua adoção estava repleta de falhas —como a maioria dos bebês sequestrados pela ditadura argentina.

Sequestrar bebês de presos políticos era uma tática da repressão para os mesmos serem adotados por "pessoas de bem", que não "transmitiriam o comunismo" aos seus filhos.

"Eles achavam que se os bebês fossem criados longe das famílias dos 'terroristas', cortariam o mal pela raiz", relatou Manuel.

A descoberta da verdade

Em 1997, já com 20 anos, Manuel foi procurado pela Equipe de Antropologia Forense Argentina (EAFF), que, após receber uma denúncia de sua avó biológica materna, cruzou o DNA dos restos mortais de sua mãe biológica, e assim, localizaram a criança cuja adoção estava sob suspeita.

Era ele: o bebe que sobreviveu ao Massacre da Rua Juan B. Justo.

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"Nesse processo, descobri que o meu padrinho era primo do juiz que facilitou a adoção", contou. Mesmo assim, Manuel não consegue dizer se sua família adotiva sabia de sua origem e de que seus pais biológicos foram assassinados pela ditadura.

"Não sei se minha família sabia da minha verdadeira origem. Não tenho isso totalmente claro", afirmou ao UOL.

Luta por memória, verdade e justiça

A busca por bebês roubados é uma luta tecida há quarenta pelas Avós da Praça de Maio, organização de direitos humanos que luta por verdade, memória e justiça dos crimes da ditadura argentina.

Elas ocuparam os meios de comunicação, as ruas e até mesmo aos shows de rock para difundir a busca por seus netos, filhos de seus filhos que foram presos e sequestrados nos anos de repressão.

Como parte do trabalho das Avós da Praça de Maio, a Argentina foi se institucionalizando como um país que investiu em memória, verdade e justiça, criando mecanismos que garantem o direito à identidade, como o Banco Nacional de Dados Genéticos de Famílias de Desaparecidos, a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade, criada para facilitar a busca dos bebês roubados, a lei de criação da Conadi e organismos específicas que ajudam na busca pelos bebês roubados.

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A investigação se dá em sua maioria por duas frentes:

  1. Aqueles que duvidam se sua identidade podem buscar esses organismos e pleitear uma investigação;
  2. As denúncias de terceiros que desconfiam de adoções ilegais e cujas datas coincidem com o período da ditadura..

As embaixadas argentinas espalhadas por todo o mundo também são treinadas a participarem dessa investigação quando há uma denúncia de algum bebê que possa ter sido sequestrado e levado para fora da Argentina.

Milei nega os crimes da ditadura

Os trabalhos das organizações sociais e dos organismos estatais seguem apesar do atual presidente argentino, Javier Milei, já ter relativizado inúmeras vezes os crimes da ditadura

O pai de Manuel Gonçalves, morto pela ditadura
O pai de Manuel Gonçalves, morto pela ditadura Imagem: Arquivo da Associação Avós da Praça de Maio
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Tanto Milei como sua vice-presidente, Victoria Villarruel, que é filha de militares, minimizam os crimes da ditadura e colocam em dúvida o número de 30 mil desaparecidos políticos, afirmando que o número é de 8.700 e que os militares "cometeram excessos".

Em 1985, a Argentina julgou em um tribunal civil líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país no último golpe de Estado.

A maioria dos líderes acusados foram condenados por crimes de lesa humanidade. Em 2022, mais 19 ex-membros das Forças Armadas também foram condenados.

Na Argentina, uma lei de 2015 proíbe a anistia, indulto ou mudanças na pena dos crimes de genocídio, de lesa-humanidade e de crimes de guerra.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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