Amanda Cotrim

Amanda Cotrim

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Na Argentina, 'Ainda Estou Aqui' teria final com militares condenados

Concorrente a melhor filme e melhor filme estrangeiro no Oscar, o longa brasileiro "Ainda Estou Aqui" estreia hoje na Argentina e, na terra dos hermanos, poderia ter tido outro final. Diferente do que aconteceu no Brasil, os argentinos investigaram, julgaram e condenaram militares por crimes cometidos pelo Estado durante a última ditadura (1976-1983). A expressão 'Nunca mais" se tornou uma marca no país.

As políticas de memória da Argentina são consideradas referência para os países da América do Sul e foram possíveis pelo reconhecimento jurídico dos crimes de estado cometidos pelo regime militar, explica o pesquisador José Alves de Freitas Neto, professor de História da América na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Nesse sentido, é provável que Eunice Paiva, personagem interpretada por Fernanda Torres em 'Ainda Estou Aqui', não tivesse levado uma vida toda para conseguir o atestado de óbito do marido, Rubens Paiva", ressalta.

Investigação sobre ditadura foi premissa para redemocratização argentina

Como disse o primeiro presidente eleito de forma direta no país após na redemocratização, Raúl Alfonsín, em 1983, não haveria democracia sem a investigação sobre os crimes da ditadura na Argentina.

Nesse sentido, destaca Alves de Freitas Neto, as investigações jurídicas retroalimentaram movimentos da sociedade civil, que pressionaram o estado em busca de respostas sobre os desaparecidos, como é o caso das Mães e Avós da Praça de Maio. "No Brasil, ao contrário, tivemos eleições indiretas e uma política de anistia feita para proteger os militares brasileiros, que considerou que eles não seriam investigados. Diferente da Argentina, o Brasil não desenvolveu políticas imediatas de memória. Lá, a consigna "Nunca Mais" virou política de Estado", disse.

A certidão de óbito de Rubens Paiva, que saiu oficialmente em 1996— 25 anos depois de seu assassinato— só foi corrigida em 2025, quando foi atribuída "morte violenta ao Estado brasileiro". O reconhecimento se deve aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), que foi criada quase trinta anos depois do fim da ditadura brasileira (1964-1985) e também à projeção do filme baseado no livro de mesmo nome e escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado. Coincidência ou não, a correção no documento ocorreu no mesmo dia em que o longa de Walter Salles foi indicado ao Oscar.

Brasil negociou democracia, enquanto Argentina rompeu com a ditadura

A Argentina, diferente do Brasil, não teve um processo de negociação para a transição da democracia, mas "uma revisão explosiva e negativa para os militares", apontou o sociólogo argentino, Marcos Novaro, professor na Universidade de Buenos Aires (UBA). "Os argentinos têm dificuldade em negociar e com os militares não foi diferente. Na época, havia grupos políticos dispostos a dialogar por uma transição, mas os militares foram inflexíveis, não queriam reconhecer as torturas, por exemplo. Apostaram na lógica do tudo ou nada", explica Novaro.

Continua após a publicidade

Sob o regime militar, a Argentina vivia uma grave crise econômica, com inflação na casa dos 300% e intenso conflito social. Mesmo assim, os militares apostaram na Guerra das Malvinas para se manterem no poder, disse Novaro. "A derrota na guerra [diante dos ingleses] em 1982 teve um custo alto para o regime. Os militares deixaram o poder desmoralizados", conta.

O Brasil negociou a saída da ditadura e a retomada da democracia, como explica Alves de Freitas Neto. "O processo envolveu partidos políticos e acabou criando uma proteção para os militares, gerando um custo histórico até hoje. O resultado disso é a ausência de justiça e de memória sobre os crimes da ditadura, processo oposto ao da Argentina (...) Sem memória, não há como olhar para o passado e ver o presente e isso o longa do Walter Salles retrata muito bem. Quando a personagem no final do filme tem um instante de memória, é uma mensagem para os dias de hoje, sobre a importância da memória de um país", compara.

Novaro ressalta, contudo, que o Estado argentino ainda não respondeu todas as perguntas daquele período, tampouco condenou todos os envolvidos nos crimes cometidos pelo regime de repressão. O país ainda tem 30 mil desaparecidos do regime ditatorial.

Filme brasileiro pode despertar argentinos

A pesquisadora de cinema argentino e professora de história na Universidade Federal de Uberlândia Mônica Brincalepe Campo ressalta que a Argentina é especialista em produções audiovisuais sobre a ditadura. "A temática é quase um gênero do cinema argentino", disse. O país já coleciona duas estatuetas do Oscar com longas sobre o tema: A história oficial (1986) e O segredo dos seus olhos (2009). "A variedade de produção audiovisual sobre a ditadura ajudou a construir orgulho nos argentinos por terem superado o regime com luta e resistência", destaca.

Walter Salles é um estudioso do cinema argentino. O cineasta brasileiro gosta de conhecer, segundo a pesquisadora, as variadas linguagens ao redor do mundo. Salles tem trabalhos audiovisuais na Argentina, sendo "Diário de Motocicleta" o mais emblemático.

Continua após a publicidade

Apesar da memória construída sobre a ditadura com o apoio do cinema, Mônica destaca que na Argentina não há um consenso retumbante sobre os crimes dos militares. Atual presidente, Javier Milei relativiza os crimes da ditadura e nega que sejam 30 mil desaparecidos, assim como sua vice, Victoria Villarruel, que é filha de militares. "Nesse sentido, o longa brasileiro ensina o quanto temos que permanecer atentos. Que o Nunca Mais precisa ser relembrado, aqui [Brasil] e lá [Argentina]", afirmou Mônica.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.