Curas Villeros: como a Igreja Católica é mediadora nas favelas argentinas

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"Um padre que escolheu ser favelado", diz um muro no bairro Cidade Evita, no município de La Matanza, na grande Buenos Aires. O grafite é apenas um exemplo entre os vários presentes na maioria dos bairros periféricos da Argentina que mostram a força da Igreja Católica em territórios que, muitas vezes, estão longe dos olhos da Casa Rosada.
Na Argentina, o trabalho da Igreja nas periferias vai além de levar uma palavra de conforto, celebrar missas ou conseguir uma cadeira de rodas para um morador que a necessita. Os curas villeros (padres de favelas) atuam a partir de uma lógica do direito, uma diferença essencial em relação à atuação da Igreja Católica no Brasil, reflete a pesquisadora brasileira Ana Beraldo, doutora em sociologia e atualmente pesquisadora visitante na Urban Studies Foundation.
Não é apenas dar o que falta, sanar uma necessidade pontual, mas, sobretudo, mobilizar politicamente o que seria um direito daquele sujeito, como a luta por políticas públicas nesses lugares, Ana Beraldo, pesquisadora

A pesquisadora mineira que se debruçou sobre a atuação da igreja, do estado e do crime nas favelas de Belo Horizonte, atualmente investiga esses mesmos poderes nas favelas de Buenos Aires, onde mora há quatro anos. Ela observa que, na Argentina, a Igreja Católica é uma mediadora na relação entre população e estado, principalmente em momentos de crise.
Curas villeros fazem parte da comunidade
Na Argentina, os curas villeros expandiram a atuação da igreja católica a níveis elevados de institucionalização, com a construção de creches, escolas, cozinhas populares, centros esportivos e reabilitação de usuários de drogas, os "Lugares de Cristo". Os padres se envolvem até na luta por moradia e historicamente participam de mutirões de construções de casas.
Em Buenos Aires, os padres responsáveis pelas paróquias nas periferias decidiram viver nos bairros e conviver diariamente com os moradores. Isso implicou que eles compartilhassem os desafios enfrentados, como a ausência de saneamento básico e de infraestrutura, além da expansão violência, muitas vezes como efeito colateral da ausência do Estado. Alguns chegando a questionar o status quo, participando, inclusive, de protestos de rua.

"Isso é diferente do que costuma acontecer no Brasil. Apesar de haver exceções, os padres brasileiros moram fora dos bairros periféricos e vão na periferia somente para celebrarem missa ou quando há alguma ação social. Uma vez terminada, os padres voltam para os seus bairros. Então eles não costumam compartilhar a vida cotidiana com essas pessoas (que moram nas favelas)", reflete a pesquisadora.
Por não morarem nas favelas, os padres brasileiros não estão nas favelas durante a noite, um horário onde toda a dinâmica dos bairros periféricos muda. A experiência de viver nas favelas dos curas villeros, segundo ela, transforma a relação dos padres com os mais pobres e o trabalho deles nas periferias.
"Na Argentina, a Igreja Católica atua como mediadora entre Estado e população"
Ana Beraldo, pesquisadora
Mesmo assim, pondera a pesquisadora, praticamente todos os padres de favela da Argentina são provenientes da classe média, brancos, com outro tipo de capital social. E por mais que vivenciam as problemáticas de um morador da periferia, eles "nunca serão moradores como os outros", enfatiza.
Como no Brasil, igreja evangélica cresce na Argentina
Atualmente, cerca de 60% da população argentina- uma população de 46 milhões de pessoas- se declara como católica, de acordo com os dados oficiais do censo de 2022. Os evangélicos são 15,3% e os sem religião são 18,9%. Em 2009, os evangélicos eram menos de 10%.
No Brasil, uma pesquisa do Datafolha de 2020 revelou que cerca 50% dos brasileiros (dos mais de 200 milhões de habitantes) se declararam católicos e 31% evangélicos, o dobro do número de evangélicos na Argentina, cuja população é quatro vezes menor.
"Isso não significa dizer que na Argentina não esteja acontecendo um crescimento da diversidade religiosa, com os evangélicos, como ocorre no Brasil e na maioria dos países da América Latina. Mas isso acontece de um jeito paralelo à força que mantém a Igreja Católica nas periferias argentinas", pontua Beraldo.
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