Amanda Cotrim

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Reportagem

Argentina vive 'deterioração da liberdade de imprensa', dizem jornalistas

Javier Milei assumiu a presidência em dezembro de 2023 com a liberdade como um dos pilares da campanha, mas é acusado de abafar vozes que não dizem o que o presidente gostaria de ouvir. Jornalistas argentinos dizem que há mais de um ano estão trabalhando sob condições tensas, hostis e violentas.

A poucos meses das eleições legislativas, os insultos de Milei contra a imprensa têm aumentado no país. "Não odiamos os jornalistas o suficiente", disse recentemente o presidente em sua conta no X.

Em um relatório divulgado na semana passada, a Organização RSF (Repórteres Sem Fronteira) afirmou que a Argentina sofreu uma das maiores quedas no Índice de Liberdade de Imprensa nos últimos dois anos, saindo do 66ª colocação para a 87ª, em uma avaliação de 180 países.

"Os retrocessos podem ser explicados pelas tendências autoritárias. Milei estigmatizou jornalistas, desmantelou a mídia pública e utilizou a publicidade estatal como instrumento de pressão política", diz o informe.

Não é a primeira vez que uma organização internacional alerta sobre a deterioração da liberdade de imprensa e de expressão na Argentina sob Milei. Recentemente, a Anistia Internacional apontou para o que seria "efeito Trump" dos ataques de Milei a jornalistas e à liberdade de expressão na Argentina.

Em entrevistas e nas redes sociais, Javier Milei diz que jornalistas são: "mentirosos, idiotas, violentos, agressivos, imbecis, desprezíveis". O presidente argentino mantém um post fixo em sua rede social X no qual afirma que o jornal argentino Clarín —um dos maiores do país— é a "maior fraude da Argentina''.

O que dizem os jornalistas

Sob sigilo, uma jornalista argentina que cobre política disse à reportagem se sentir "cada vez mais insegura" em trabalhar. "Sempre houve uma tensão entre jornalistas e governo, mas jamais como agora", revelou. Segundo ela, Milei tem ameaçado jornalistas e limitado o acesso às informações públicas, produzindo um clima de hostilidade e pouca transparência.

Em setembro, o governo Milei decretou uma série de restrições de acesso à informação pública na Argentina, estabelecendo novas definições sobre conceitos como informação pública e documentos, alterando a lei de acesso à informação pública vigente no país.

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"Vimos o que ocorreu no Brasil, com Bolsonaro. Tenho medo desse discurso constante do presidente, de ataque à imprensa, influenciar seus apoiadores, gerando violência física contra nos", disse a jornalista.

Há uma semana, o braço direito de Milei, o assessor político Santiago Caputo, foi acusado de atentar contra a liberdade de imprensa, intimidando um fotojornalista que cobria um evento político do qual ele participava. Nas imagens, é possível ver o assessor de Milei segurando a credencial que estava no pescoço do jornalista, intimidando-o.

"Eu estava fotografando a chegada dos políticos, quando Santiago Caputo pediu para eu parar de fotografá-lo. Como não parei, ele inclinou o corpo para cima de mim, puxou minha credencial e fez uma foto dela", relatou o fotógrafo do jornal Tiempo Argentino, Antonio Pegoraro, de 24 anos.

Ao UOL, o fotógrafo afirmou nunca ter vivenciado situação parecida e que teme agressões a jornalistas. "Já fotografei inúmeros políticos e nunca passei por isso. O ataque constante a jornalistas tem se transformado em uma política de Estado", disse Pegoraro.

O Sindicato de Imprensa de Buenos Aires repudiou a atitude do assessor de Milei e exigiu liberdade para os jornalistas exercerem o ofício sem ameaças.

Sobre o caso do fotógrafo, o porta-voz da Casa Rosada disse, em coletiva de imprensa, que Santiago Caputo fotografou a credencial do jornalista do jornal Tiempo Argentino porque "queria ver quem era o profissional para confirmar se depois sairia bem na foto" afirmou.

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Há algumas semanas, o jornalista Roberto Navarro, diretor do jornal "El Destape", foi atacado pelas costas enquanto caminhava pelo centro de Buenos Aires. Ele atribuiu a agressão ao presidente Milei. "Eu responsabilizo o presidente da nação, Javier Milei, pelo que aconteceu comigo e pelo que me pode acontecer'', disse. "Isso gera medo e o medo gera silêncio. O golpe na minha cabeça foi um golpe em qualquer jornalista critico", afirmou. Ele recebeu apoio de diversos jornais do país.

Em março, um homem de 43 anos foi detido no centro portenho acusado de agredir um jornalista do canal TN enquanto cobria, ao vivo, as manifestações em prol dos aposentados, no Congresso Nacional. O suspeito foi localizado por causa das câmeras que puderam registrar o rosto do suposto agressor.

Com Milei, agressões a jornalistas dobram

Um relatório do Observatório da Palavra Democrática revelou que nos primeiros 16 meses de governo de Milei foram registrados 216 agressões contra jornalistas, fotojornalistas e profissionais de comunicação. Em 2022, segundo o Observatório, o registro era de menos de 100. Segundo o informe, 50% dos ataques foram físicos, 22% virtuais e 16% referente a limitação do acesso à informação. O estudo se baseou em informes da organização Repórteres Sem Fronteira, Amnistia Internacional e do Fopea (Foro de Jornalismo Argentina).

À reportagem, a presidente da Fopea, Paula Moreno Román, destacou que na Argentina sempre houve tensão entre jornalistas e o poder político, "o que é normal no exercício da democracia". Mas, segundo ela, desde que assumiu Milei, os ataques à imprensa e à liberdade de expressão se dilataram.

"Estamos vivendo uma deterioração da liberdade de imprensa. Primeiro, o próprio presidente —e seu entorno— é o principal agressor. Segundo, o tipo de agressão é o discurso que estigmatiza os profissionais de imprensa, tratando-os de mentirosos e bandidos, algo impensável", diz.

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O outro lado

Questionada, a Casa Rosada afirmou em coletiva de imprensa que o governo valoriza "muito o jornalismo, desde que seja um jornalismo real e não de mentiras" (...) "O erro faz parte do ser humano, mas não a mentira. O presidente não generaliza (os ataques) aos jornalistas. Todo mundo sabe bem a quem ele se refere", argumentou, reconhecendo perseguições a jornalistas, sem especificar.

Sobre a agressão física ao diretor do jornal "El Destape", a Casa Rosada minimizou a narrativa de que as atitudes de Milei teriam sido gatilho para a violência sofrida pelo jornalista.

"Esse governo não pactua com nenhum tipo de violência, inclusive contra jornalistas. Roberto Navarro recebeu um telefonema do governo, em solidariedade. Não [acredito que a agressão que ele sofreu] está relacionado às críticas do presidente [à imprensa]". E continuou: "A única arma que tem o presidente, além das entrevistas, é sua conta no X. Não há muito mais o que dizer. Seguiremos respeitando os jornalistas", disse.

O UOL questionou a Casa Rosada sobre os informes internacionais e nacionais a respeito da deterioração da liberdade de imprensa na Argentina, mas não teve resposta até o fechamento deste texto.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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