Argentina anuncia reforma migratória; medida ameaça brasileiros

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A Casa Rosada confirmou uma reforma que altera a Lei de Migrações do país, antes considerada referência em direitos humanos. Inicialmente, cogitava-se uma reforma migratória via projeto de lei, porém, prevendo resistência e demora para sua votação, o governo vai apresentar um DNU (Decreto de Necessidade e Urgência). Na Argentina, o DNU, que tem força de lei, é um mecanismo do executivo, que só pode ser derrubado caso o Senado e a Câmara votem contra o decreto, mas que segue vigente até a análise das duas casas.
O decreto ainda não foi publicado no diário oficial do país e por isso não é possível saber os detalhes da normativa. No entanto, na coletiva de imprensa da Casa Rosada, o governo confirmou que a reforma migratória vai restringir os critérios para a concessão de residência a estrangeiros e para solicitação do passaporte argentino, além de permitir a cobrança de serviços de saúde e educação a estrangeiros sem residência permanente, facilitar a deportação de estrangeiros que sejam presos em flagrante, que cometeram algum delito ou cujo status migratório esteja irregular.
O governo argumenta que os estrangeiros usufruem da saúde e da educação gratuita e que isso onera o Estado. Na coletiva de imprensa hoje para anunciar o DNU, o porta-voz da Casa Rosada, Manuel Adorni, afirmou que a Argentina se construiu com os imigrantes no século passado, mas que agora "isso mudou". "Nossa lei migratória convida ao caos e atrai qualquer pessoa e as condições de deportação são flexíveis", disse. A Casa Rosada apresentou uma cifra de um milhão e setecentos mil imigrantes em situação irregular. Esse dado, no entanto, contrasta com informações oficiais do censo argentino de 2022, que diz que no país há 2 milhões de imigrantes e que apenas 365 mil usufruem do sistema educacional.
A nova normativa não permitirá que uma pessoa estrangeira condenada ingresse na Argentina. Também prevê que estrangeiros sem residência permanente, ou seja, quem tem a residência temporária ou transitória ou mesmo quem não tem residência, sejam proibidos de usar o sistema gratuito de saúde. "Usam a saúde sem contribuir com os impostos, fazem o famoso tour sanitário. Só em oito hospitais, foram gastos milhões de pesos argentinos atendendo estrangeiros", disse Adorni sem apresentar mais detalhes. Em seu discurso, o porta-voz associou a imigração a delinquência, afirmando que dos 4.300 estrangeiros detidos atualmente em Buenos Aires, 40% foram presos por roubo. A Casa Rosada não apresentou dados nacionais sobre o tema.
O governo também investe na narrativa de que a maioria dos narcotraficantes e pessoas envolvidas com outros crimes são estrangeiros, mas, segundo o informe de 2023 do Serviço Penitenciário Federal, 84% da população carcerária é de nacionalidade argentina e 16% de outros países.
O DNU impulsiona uma "série de mudanças no regime migratório atual", disse Adorni. "Quem entrar irregularmente no país, será expulso. Todo aquele que for condenado por qualquer delito, será expulso, independente do crime", disse. "Temos imigrantes de bem e não é justo para eles que os imigrantes ilegais (sic), residentes transitórios ou temporários não paguem pela saúde". O porta-voz também disse que a nova normativa exigirá que qualquer turista que ingressar na Argentina precisará apresentar seguro de saúde. Já as faculdades nacionais "que quiserem poderão cobrar dos estrangeiros sem residência permanente".
Reforma pode impactar brasileiros
A reforma pode impactar a vida de 90 mil brasileiros residentes na Argentina, segundo dados recentes do Itamaraty. Destes, cerca de 20 mil são estudantes, segundo os últimos dados da secretaria de educação. Atualmente, os brasileiros que decidem morar na Argentina solicitam a residência permanente diretamente, sem a necessidade de obter a residência provisória, como outros estrangeiros, devido a um convênio bilateral entre Brasil e Argentina, vigente desde 2005.
Natália Andrade, 32, mudou-se para Argentina em 2019 para estudar medicina na Universidade de Buenos Aires (UBA). Ela já era formada em engenharia de pesca no Brasil, mas viu no país vizinho a oportunidade de realizar o sonho de ser médica, já que a UBA é gratuita e pública, sem o vestibular como se conhece no Brasil.
Seu processo migratório foi rápido e sem burocracias, mas a estudante confessa que está preocupada com seu futuro e de outros imigrantes no país. "Minha maior preocupação é no que está por vir nos próximos anos. Estamos vivendo mudanças bruscas na economia, com elevado custo de vida em pouco tempo. Eu temo que a reforma migratória mude as regras, dificultando o acesso de um estudante estrangeiro que sonha estudar medicina na Argentina", disse.
Ao UOL, o consulado e a embaixada brasileira confirmaram que acompanham de perto os planos do governo Milei de realizar uma reforma migratória no país. "A Embaixada e o Consulado têm colhido informações sobre os planos argentinos de realizar uma reforma de aspectos de sua política migratória, cujo texto ainda não é de conhecimento público. Têm também mantido contato com a comunidade brasileira na Argentina, inclusive grupos de estudantes, a fim de entender suas preocupações e de conhecer mais de perto sua situação jurídica/migratória. Conforme novos elementos das mudanças pretendidas pelo governo argentino forem conhecidos, será possível avaliar com mais clareza eventuais efeitos para a comunidade brasileira', disse em nota.
De acordo com a embaixada brasileira em Buenos Aires, mesmo brasileiros que ingressam na Argentina com o visto de estudante, isto é, uma permissão transitória e temporária para viver, podem solicitar a residência permanente, estando em solo argentino, devido ao convênio bilateral entre os dois países.
Autor da lei defende migração como direito humano
A atual Lei de Migrações da Argentina, vigente desde 2024, é considerada por organismos internacionais como referência de direitos humanos. Ela estabelece como princípio que o ato de migrar é um direito humano, por isso, qualquer estrangeiro, independente do seu status migratório, tem direito aos mesmos serviços que os argentinos, como acesso à saúde e a educação públicas e gratuitas.
À reportagem, o autor da Lei de Migrações, o ex-senador Rúben Giustianini, afirmou que as tentativas do governo Milei de enfraquecê-la é um retrocesso. "Somos referência. A lei é o nosso orgulho. Ela estabelece que migrar é um direito. Todos em solo argentino têm os mesmos direitos. As pessoas que migram buscam caminhos para melhorar suas vidas, para escapar de uma guerra, da fome, da morte, do desemprego. Querem viver. Levantar um muro é ineficaz, além de ser desumano", afirmou.
Argentina endurece fronteiras.
Recentemente, o governo anunciou que enviará as Forças Armadas para as suas fronteiras com o Brasil, Paraguai e Bolívia. De acordo com o Ministério da Defesa da Argentina, o objetivo é reforçar a segurança nas fronteiras terrestres, fluviais e aéreas no combate à criminalidade nas regiões, podendo prender civis durante as operações. A operacão faz parte de um plano que também inclui a construção de um muro de arame com a Bolívia. Na época, a ministra de Segurança Patricia Bullrich não descartou criar muros nas fronteiras com o Brasil
Endurecer o trânsito e permanência de estrangeiros foi uma promessa de campanha de Milei. No início de seu mandato, o UOL revelou, com exclusividade, que dezenas de brasileiros foram impedidos de entrar na Argentina acusados de falsos turistas. Na época, uma turista do Cazaquistão chegou a morar duas semanas no aeroporto de Buenos Aires, impedida de entrar no país. No ano passado, o governo também estipulou um decreto que alterou os critérios para a concessão de refúgio.
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