Amanda Cotrim

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Reportagem

Revolta e alegria com prisão de Kirchner retratam Argentina polarizada

Uma manifestação em apoio à ex-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, 72, reuniu milhares de manifestantes, que marcharam ontem pelas ruas do centro de Buenos Aires. Estima-se que quase um milhão de pessoas participaram da manifestação, a qual lotou a praça de maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino.

Militantes, sindicatos, organizações sociais e apoiadores protestaram contra a condenação de Cristina, em última instância, a seis anos de reclusão e perda de direitos políticos, por fraude em contratos públicos. No dia 17, ela teve prisão domiciliar concedida pela Justiça e está desde então presa em casa, com tornozeleira eletrônica e sem poder sair na varanda de seu apartamento, no bairro de San Cristóbal, em Buenos Aires, onde, há uma semana, milhares de militantes fazem vigília em solidariedade à ex-presidente.

Mesmo antes, Cristina participou da manifestação. Uma mensagem em áudio de quase 10 minutos foi divulgada durante o ato. Ela disse que ficou emocionada com a quantidade de apoiadores. "Vamos voltar", afirmou, em referência aos cânticos dos militantes.

"O país que tinha educação, saúde, remédio e sem dívida não foi uma utopia. (...) Incrível como destruíram tudo isso. Esse modelo que agora encarna Milei vai cair não só porque é injusto, mas porque é insustentável em termos econômicos. vimos isso no passado", disse. "Sabem porque não me deixam competir [nas eleições] ? Porque sabem que vão perder", afirmou. "Vamos defender a democracia, sem violência, mas com coragem".

Homenagens em frente à casa de Cristina

A prisão da ex-presidente intensificou o clima de polarização no país. Os militantes que fazem vigília há uma semana em frente à casa dela afirmam que Cristina é "vítima de perseguição política e jurídica".

Norma de Rivas chora pela prisão da peronista. Segundo ela, graças aos governos de Cristina, a família dela pode comprar a casa própria, comer carne com frequência, além da desigualdade social do país ter diminuído.

Moradora de Lujan, a 70 km de Buenos Aires, Norma ficou mais de 24 horas em vigília em frente à casa de Cristina. Disse à reportagem que levou uma coberta para o frio da madrugada. "Estou preparada. Tudo por Cristina", contou.

"Cristina roubou o meu coração. Estou aqui apoiando a nossa referência, porque ela é inocente", disse o aposentado Gustavo Paiorana, de 75 anos, que carregava um cartaz com os dizeres "Cristina libre". Ele disse que é peronista e afirmou que Cristina é vítima de perseguição jurídica e política.

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Beatriz, de 85 anos, carregava um livro com o nome de Eva Perón na capa e com as fotos de Cristina Kirchner e do marido dela, o também ex-presidente Néstor Kirchner. Segundo Beatriz, apoiar a ex-presidente é "inevitável". Assim como Gustavo, Beatriz diz acreditar na inocência da ex-mandatária. "O que estão fazendo com ela é uma injustiça. Mas Cristina voltará a ser presidente. Eu confio", disse a aposentada.

Os aposentados são o grupo que mais sofre os impactos das políticas de ajuste fiscal de Javier Milei. Todas as quartas-feiras, centenas deles protestam em frente ao Congresso Nacional por melhores pensões. A maioria das manifestações é reprimida pela polícia argentina. Em 12 de março, a repressão policial vitimou o fotojornalista Paulo Grillo, que ficou três meses em terapia intensiva depois de ser atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo.

Prisão de Cristina também foi celebrada

Por outro lado, desde que Cristina teve a condenação confirmada pela Suprema Corte, argentinos contrários à ex-presidente festejaram a prisão e a impossibilidade de ela voltar a se candidatar.

Usuários da rede social X ironizaram a prisão e disseram que os militantes peronistas terão que ficar por seis anos na frente da casa da ex-presidente, em referência ao tempo da condenação de Cristina. Outro disse que a peronista é corrupta: "Amanhã, por causa da prisão da corrupta Cristina Kirchner, não haverá aulas em várias escolas de Buenos Aires", disse Jacob Dutt, nas redes sociais, referindo-se a paralisação de alguns setores do funcionalismo público, em repúdio à prisão.

Um dos jornalistas mais conhecidos do país, Eduardo Feinmann, também celebrou a prisão, durante o seu programa na rádio Mitre. "É para festejar", afirmou. Ele também ironizou que a ex-presidente estaria muito bem de saúde, indicando que ela não precisaria estar em prisão domiciliar. O jornalista também destacou que Cristina não está mais recebendo aposentadoria por ter sido ex-presidente. A pensão foi suspensa pelo presidente Javier Milei.

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Polarização política

O descontentamento, principalmente, com o segundo governo de Cristina Kirchner (2011-2015) e com o de Alberto Fernández, de quem Kirchner foi vice (2019-2023), convenceu muitos argentinos a elegerem Javier Milei. Apesar de a economia seguir em crise e o salário da maioria dos argentinos não ser suficiente, os apoiadores de Milei são acometidos por uma esperança de que o ajuste fiscal do atual governo terá frutos e que o presidente cumpriu sua promessa de campanha e conseguiu diminuir a inflação. A inflação mensal da Argentina reduziu de 25% no primeiro mês de Milei para cerca de 1,5% em maio.

O governo Milei, por sua vez, não tem se pronunciado sobre a prisão de sua principal rival política. O presidente Javier Milei se limitou a escrever no X que a condenação de Cristina significou justiça.

Mesmo presa, muito provavelmente Kirchner não estará fora do tabuleiro político, influenciando os próximos passos dentro do peronismo. "As manifestações pró Cristina, desde a confirmação de sua condenação, também é uma forma do kirchnerismo ter centralidade política, lhe dando um pouco de poder, ainda que momentâneo, no contexto previo da data limite - 19 de julho- para que os partidos entreguem suas listas com candidatos aos cargos legislativos, para as eleições estaduais em setembro e nacionais em outubro.

"O desafio (da base política de Cristina) será sustentar essas mobilizações com o tempo", analisou o cientista político, Ignacio Labaqui, professor e pesquisador na Universidade Católica Argentina (UCA).

A confirmação da condenação de Cristina Kircher ocorreu dias depois de a ex-presidente declarar que seria candidata a deputada estadual pela província de Buenos Aires, a qual reúne 40% do eleitorado da Argentina e é considerada um bastião do peronismo.

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Apesar de estar fora do cenário político-institucional, a influência do peronista se manterá, após Labaqui. "Cristina vai querer importar algum nome leal para ela para poder encabeçar a lista de deputados da terceira sessão eleitoral, que é a mais populosa da província. Uma possibilidade é que ela tente emplacar seu filho, Máximo Kirchner.

Analistas políticos consultados pela coluna são unânimes em consideração que ainda é cedo para poder traçar um panorama político sobre as eleições legislativas deste ano sem Cristina. No entanto, a prisão de Cristina pode contribuir para que o seu capital político seja potencializado. "O capital político de Cristina e de todo o peronismo estava baixo, mas agora, ela recupera essa potência narrativa", particularmente o cientista político argentino Fernando Sardou. Para ele, no entanto, a prisão da ex-presidente também pode servir ao seu rival, Javier Milei. "Tudo isso serve a Milei, porque assim ele poderá ordenar a narrativa e mostrar a prisão de Cristina como resultado de sua gestão, como quem diz "No meu governo, a justiça foi feita", analisou Sardo.

O analista político Sergio Morresi, do Conicet (Conselho de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina) contudo, defende que a prisão de Cristina pode ser um potencializador para a unificação de sua política de base: "É muito cedo para analisar, mas eu diria que é provável que haja maior unificação do kirchnerismo. É preciso, no entanto, ver como o núcleo político de Cristina vai reagir nos próximos dias e como isso reverbera ao restante do peronismo, se ficar em declarações formais ou não",

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