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André Santana

Político que tentou proibir animais em ritual religioso tem mandato cassado

Marcell Moraes (PSDB-BA) teve o mandato cassado por abuso de poder econômico - Divulgação
Marcell Moraes (PSDB-BA) teve o mandato cassado por abuso de poder econômico Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

01/11/2020 04h00

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Na última terça-feira, 27, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu por unanimidade pela cassação do mandato do deputado estadual Marcell Moraes, do PSDB da Bahia.

O político foi condenado por abuso de poder econômico por oferecer atendimentos veterinários (vacinação e castração) como propaganda eleitoral em diversas cidades do estado, às vésperas das eleições de 2018.

A ação que resultou na condenação foi movida pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) após denúncia feita pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia (CRMV-BA). A denúncia aponta a realização de procedimentos sem a devida autorização dos órgãos sanitários e a presença de publicidade do então candidato à reeleição.

O político promete recorrer.

"Lutarei incansavelmente para reverter a decisão. Enquanto houver chances não desistirei. Estou com minha consciência muito tranquila. Não roubei dinheiro público, não fiz caixa 2 e nenhuma outra ação que desonrasse meu mandado, meus eleitores, família e amigos. Continuarei fazendo o que mais amo fazer nesses meus últimos 18 anos: cuidar dos animais", declarou Marcell.

Com uma trajetória política apoiada na causa animal, Marcell tornou-se inimigo das comunidades de religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Quando vereador em Salvador (2013-2014), o político tentou aprovar uma lei para impedir animais em rituais religiosos.

Na Câmara de Salvador, a proposta de Marcell foi rejeitada e considerada preconceituosa e intolerante, por associar o candomblé aos maus tratos contra os animais.

Em março de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional o uso de animais em práticas religiosas. Por unanimidade, os ministros do STF entenderam que não se trata de maus tratos ou crueldade de animais para fins de entretenimento, mas sim a sacralização para o exercício de um direito fundamental que é a liberdade religiosa.

Entre os argumentos favoráveis está o fato de as práticas religiosas do candomblé resultarem em consumo e compartilhamento, não apenas para os frequentadores, mas para toda a comunidade do entorno dos terreiros.

Candomblé: uma religião ambientalista

Pouco dias antes da decisão do STF, morria em Salvador Valdina Pinto, uma importante defensora das religiões de matriz africana, que se destacou no enfrentamento ao ódio religioso e que provou não haver oposição entre o candomblé e a defesa da natureza.

Makota Valdina era uma líder religiosa, educadora e ambientalista, que faleceu aos 75 anos, após décadas de ativismo em defesa do meio ambiente, da educação e do respeito às religiões afro-brasileiras.

Makota Valdina Pinto - Carla Bahia / Ascom Irdeb - Carla Bahia / Ascom Irdeb
A educadora Valdina Pinto (1943-2019) dedicou sua vida à defesa do meio ambiente e das religiões afro-brasileiras
Imagem: Carla Bahia / Ascom Irdeb

Makota era o nome do cargo que ela exercia dentro da comunidade religiosa de tradição Angola e que tem como missão zelar pelas entidades, auxiliando diretamente a mãe de santo ou o pai de santo dos terreiros.

Em suas falas e textos —é autora da autobiografia "Meu Caminho, meu Viver (2013)"—, Makota Valdina sempre destacou o caráter de proteção ambiental das práticas do candomblé e da convivência equilibrada entre todos os seres que compõem o meio ambiente, já que a religião cultua justamente o sagrado que se manifesta nos elementos da natureza.

Contudo, o racismo e a intolerância religiosa ainda fazem propagar informações distorcidas e uma falsa dicotomia entre o candomblé e a causa animal.

Exemplo disso foi o que ocorreu em 19 de março de 2019, dia do falecimento de Makota Valdina Pinto, quando, em uma sessão na Câmara Municipal de Salvador, foi solicitado um minuto de silêncio em respeito à religiosa.

Na oportunidade, a vereadora Marcelle Moraes - irmã de Marcell - se pronunciou solicitando que fosse incorporado também uma homenagem a uma "rinoceronta" que teria morrido no zoológico de Salvador [na verdade, ela se confundiu, pois o animal morto era uma fêmea de hipopótamo].

A solicitação da edil foi considerada uma provocação e uma ofensa contra a memória da religiosa. Nos dias seguintes, adeptos do candomblé e ativistas do movimento negro ocuparam, mais uma vez, a Câmara para condenar o ato e exigir respeito à história de Valdina Pinto.

Valdina Pinto, livro - Carla Ornelas / GovBA - Carla Ornelas / GovBA
Em 2013, Makota Valdina lançou o livro de memórias "Meu caminhar, meu viver", contando sua trajetória como professora, ambientalista e religiosa
Imagem: Carla Ornelas / GovBA

Em defesa da irmã, Marcell utilizou a tribuna da Assembleia Legislativa para fazer um pronunciamento duro contra os protestos dos religiosos de matriz africana.

"O mesmo amor que vocês têm pelos seres humanos, eu tenho pelos animais, se é que não tenho mais. Fizeram aquela palhaçada na Câmara Municipal apenas para se promover", disse, reforçando uma ideia de dualidade entre humanos e animais.

Os ensinamentos vivenciados dentro dos terreiros caminham justamente pela comunhão entre as energias contidas em expressões da natureza como os ventos, as águas, as plantas e as energias vitais que unem animais e seres humanos.

Cassação é resposta Divina

O Coletivo Nacional de Entidades Negras (CEN) considerou a cassação de Marcell Moraes uma resposta divina "no tempo certo".

"O CEN acredita que a justiça acontece no tempo certo. É curioso que o deputado estadual cassado, que tanto defendeu dogmas morais, agora tenha o mandato extinto devido a práticas ilegais".

Em nota, a coordenação da entidade informou que o povo de santo, como são também chamados os adeptos do candomblé, não acredita em vingança, embora tenha sido demonizado e associado a esses signos de barbárie durante todo o tempo.

Crianças no Candomblé - Fafá Araújo - Fafá Araújo
No candomblé, crianças aprendem cedo a conviver e respeitar o sagrado que há nos animais
Imagem: Fafá Araújo

"No entanto, acreditamos que há a resposta divina no momento certo. A cassação do mandato significa a resposta para o mundo político e para todos aqueles que, sob o guarda-chuva de algumas defesas travestidas de relevantes, tentam perseguir e suplantar o direito ao culto e à crença religiosa", diz a nota do CEN.

Agradecimento a Xangô

A Frente Nacional Makota Valdina, que reúne ativistas e representantes de religiões de matriz africana contra o racismo e o ódio religioso, também comemorou a decisão do TSE e agradeceu "primeiramente aos ancestrais em nome de Babá Sangò, orixá que governa a Justiça e a Verdade".

Na nota emitida, a Frente relembra o histórico violento e intolerante do então deputado, que "se camuflava na pauta ambiental para inflar o balão da intolerância religiosa com posturas arcaicas e medievais", informa o documento.

A Frente Nacional Makota Valdina foi criada justamente na articulação dos atos de denúncia à atitude da vereadora Marcelle Moraes e continua, honrando o nome que leva, realizando protestos contra o racismo e o ódio religioso e em defesa da livre manifestação religiosa prevista na Constituição Brasileira.