2020: o ano da encruzilhada
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Jesus de Nazaré, o Cristo celebrado nesta data, transmitiu ao mundo importantes ensinamentos de amor e respeito entre as pessoas. Falou de empatia e de acolhimento, sobretudo, aos rejeitados pela sociedade e suas normas de hierarquização e discriminação. Pregou a igualdade.
As mensagens de Jesus, ao mesmo tempo simples e revolucionárias, geraram incômodo e perseguição por parte daqueles que se beneficiavam da exploração e humilhação do outro, considerado diferente, despossuído, inferior.
Em uma das respostas dadas aos seus seguidores, registrada pelo apóstolo João, Jesus disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim".
Jesus assumiu a função de ponte, de interlocutor, de mensageiro entre as esperanças e pedidos a Deus.
Na tradição religiosa do candomblé, Exú é o mensageiro, responsável pela comunicação entre os homens e os outros orixás. Nada é feito sem o intermédio de Exú.
Para a filosofia afro-brasileira, transitando no mundo material (Aiyê) e no mundo espiritual (Orun), Exú vive na rua, a céu aberto, nas passagens, nas trilhas, guardando as encruzilhadas e a entrada das casas, e em cemitérios, locais simbólicos de divisão entre mundos diferentes.
É o orixá que rege os caminhos, as ruas, o movimento, o diálogo e as sensações do corpo, o riso e o prazer.
Domina as contradições, ambivalências e a irreverência. Ensina que para haver equilíbrio e restabelecimento da ordem é necessária a ação de forças aparentemente contrárias, seja mal e bem, céu e terra, racionalidade e paixão.
Exú: mensageiro e patrono das comunicações
Tanta potência assustou a crença e ignorância dos colonizadores, que tentaram aprisionar Exú em negatividades, associando a entidade a tudo de ruim, criando uma imagem de demônio desconhecida pelas religiões de matriz africana.
Exú é caminho, é transformação e revela as possibilidades que se colocam ao ser humano em suas contradições e questionamentos, no conflito da consciência entre agir de modo considerado correto ou incerto.
Por isso, a encruzilhada simboliza tão bem essa energia poderosa.
Em 2020, a humanidade foi colocada na encruzilhada.
Na luta para restabelecer a saúde diante da ameaça da doença e da morte, entraram em choque o conhecimento e a desinformação, a ciência e o negacionismo, a prepotência de autoridades e a solidariedade entre os povos, as escolhas individuais e as angústias do coletivo, a fé e a descrença.
A vontade de ocupar as ruas e a necessidade de cuidar da casa.
Em um ano de tantas contradições, um acontecimento jogou o racismo na encruzilhada.
Logo que as imagens da tortura e assassinato de George Floyd causaram indignação e revolta, a yalorixá Valnízia de Ayrá, que lidera a comunidade religiosa do Terreiro do Cobre, em Salvador, disse que viu no drama daquele homem negro a energia de Exú.
Em sua sabedoria ancestral, Mãe Val antecipou que aquelas imagens circulariam o suficiente para mobilizar pessoas e gerar reações. Um movimento por transformações.
Imprensa brasileira finalmente vem debatendo o tema com centralidade
No Brasil, os primeiros impactos daquele acontecimento se deram justamente nos meios de comunicação.
A imprensa brasileira foi pega em contradição: ao noticiar com devido destaque o crime e os protestos nas ruas dos Estados Unidos, evidenciou a pouca atenção dada às manifestações do racismo no Brasil e a violência que atinge vidas negras por aqui. Violência gerada, na maioria das vezes, pelas forças de segurança do estado, que diariamente humilham e matam Georges Floyds nas favelas e periferias brasileiras.
Também revelou a não valorização da contribuição dos movimentos negros e de intelectuais e pensadores negros que se dedicam ao entendimento e denúncia do racismo e a apontar formas de superação.
A partir daí se viu a busca por reparar esse erro histórico na abertura de espaços de discussão, escuta a outras vozes e perspectivas sobre o urgente tema e um olhar atento aos fatos do cotidiano que confirmam a permanência deste problema.
A temática ocupou as redes sociais, sensibilizou celebridades digitais a cederam perfis para que produtores de conteúdos negros debatessem o tema e mobilizou empresas e marcas a demonstrarem suas implicações na causa antirracista.
Entre boas intenções e oportunismos midiáticos, é fato que o tema está na centralidade dos debates públicos, despertando uma preocupação nos racistas e uma atitude mais ativa por aqueles que sofrem preconceitos.
A repercussão da morte de João Alberto Freitas, causada pela violência de seguranças, na loja do Carrefour em Porto Alegre, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, entre filmagens omissas de uns e reações de protestos de outros, reúne as contradições e alertas colocados por este ano de encruzilhadas.
Em sinais de esperança, crianças já identificam o racismo e denunciam
Reforçando que os passos dados já sinalizam novos tempos, 2020 termina com denúncias de racismo no futebol, um ambiente de resistência às discussões sociais, onde até então prevalecia a autorização para ofensas e injúrias legitimadas por um suposto estado de euforia.
Dada a complexidade que envolve o racismo, os casos no futebol geram questionamentos e tentativas de negação.
É fato que o alcance que ganhou o tema tem gerado a necessidade de novas explicações sobre suas manifestações e a cobrança por comprovação.
Neste sentido, o avanço tecnológico garantirá mais imagens, registros de flagrantes e leituras labiais que atestem a naturalização do preconceito.
Na ambivalência da encruzilhada, chama atenção a tomada de consciência de pessoas negras até então alheias às violências raciais. Alguns até afirmam terem sido vítimas pela primeira vez em 2020.
Em uma sociedade tão estruturada pelo racismo, infelizmente, é espantoso que um homem negro tenha levado tanto tempo para sofrer a primeira injúria racial em um campo de futebol.
O mesmo esporte que fez o pequeno Luiz Eduardo Bertoldo Santiago, de apenas 11 anos, gravar um vídeo chorando, para denunciar as ofensas racistas que sofreu em uma partida na cidade de Uberlândia (MG).
É bem provável que os olhares lançados à temática, neste ano, tenham despertado para a reação a atitudes ofensivas até então ignoradas ou naturalizadas.
Pouco importa que tenha sido ou não a primeira vez. É necessário que seja a última.
Como lembra o rapper Emicida, no necessário documentário "AmarElo - tudo é para ontem", para a sabedoria africana "Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje".
Que as encruzilhadas apresentadas em 2020 mobilizem reações diárias ao racismo.
Mesmo que as escolhas não sejam fáceis, o movimento já foi dado. Parados (e calados) não estaremos. Temos uma grande transformação a realizar.
Os caminhos já foram abertos, com a proteção de Jesus e de Exú.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.