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André Santana

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Governo Bolsonaro repete 'arquitetura da destruição' nazista contra artes

O secretário especial de Cultura, Mario Frias - Reprodução/Instagram
O secretário especial de Cultura, Mario Frias Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

18/07/2021 04h00

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Resumo da notícia

  • Ao promover censura ao Festival de Jazz do Vale do Capão, Funarte reforça postura fascista do governo Bolsonaro de perseguição às artes

O governo Bolsonaro tem cara de fascista, toma atitudes fascistas, causa danos à sociedade como os fascistas, mas não quer ser chamado de fascista.

A tentativa de censura promovida pela Funarte (Fundação Nacional das Artes) contra o Festival de Jazz do Vale do Capão, na Bahia, é mais uma atitude que aproxima este governo dos regimes fascistas que mancharam a história da humanidade.

Seguindo o comportamento autoritário de Bolsonaro, de ataques a artistas e profissionais de imprensa, xingamento a representantes de outros Poderes e ameaças de golpe, a pasta da Cultura parece ser a mais alinhada à prepotência do governo.

O atual secretário especial de Cultura, Mario Frias, defendeu nas redes sociais a atitude da Funarte de não habilitar o evento para captar recursos por meio da Lei Rouanet.

O Festival de Jazz do Capão acontece há oito edições, promovendo encontros musicais entre artistas de reconhecimento nacional e internacional com a cultura produzida na Chapada Diamantina.

Festival de Jazz do Capão - Divulgação - Divulgação
Além de artistas locais, o Festival do Capão já contou com nomes como Ivan Lins, Naná Vasconcelos, Hermeto Pascoal, Toninho Horta, João Bosco, Egberto Gismonti, César Camargo Mariano, entre outros.
Imagem: Divulgação

O parecer, emitido pela Funarte em 25 de junho, inicia com uma frase atribuída ao compositor alemão Johann Sebastian Bach: "o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma".

A principal razão para a negativa se baseia em uma postagem de 2020 no Facebook quando o evento se posicionou como "Festival Antifascista e Pela Democracia".

Em sua postagem, Frias prometeu que a Cultura "será resgatada desse sequestro político/ideológico!" e respondeu com ameaças às críticas recebidas.

Em diversos momentos, fica evidente que o nacionalismo bolsonarista tem inspiração em regimes autoritários. Em 2020, o então secretário de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, gravou um vídeo com menções a um discurso de Joseph de Goebbels, ministro da Informação e Propaganda na Alemanha nazista, braço direito de Adolf Hitler.

Racismo contra historiador e uso de armas no trabalho

Artistas como o humorista Marcelo Adnet já foram alvos da fúria difamatória de Mário Frias. Nesta semana, Frias foi acusado de racismo ao responder a um tweet do historiador e youtuber negro Jones Manoel, dizendo que o ativista precisava "de um bom banho".

Em maio, reportagem do UOL ouviu funcionários que dizem que Mario Frias despacha com arma na cintura no órgão federal, gerando desconforto entre funcionários. Além dos relatos de gritos e ofensas aos servidores.

Mario Frias - Reprodução - Reprodução
Tuíte racista de Mario Frias foi retirado por violar regras do Twitter
Imagem: Reprodução

Vinculado à pasta da Cultura, o presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo, vem promovendo a desmoralização de trajetórias de artistas, especialmente aqueles comprometidos com os direitos da população negra. Contrariando o que é (ou deveria ser) a razão maior da existência da fundação que ele dirige.

Descaso com artes negras e cinema brasileiro

Assim como o Bolsonaro e Frias, Sergio Camargo usa as redes sociais para ofensas a produtores de arte.

Além de artistas atacados diretamente, como foi o caso da cantora Alcione, ou de outros excluídos da lista de homenageados pela fundação, Camargo resolveu se desfazer de produções literárias do acervo da entidade, consideradas de "dominação marxista" e julgadas fora da conformidade com os fins da fundação. Entre os autores rejeitados, estão Machado de Assis e Câmara Cascudo.

Em junho, em diligência à sede da Fundação Palmares, em Brasília, a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados encontrou problemas na conservação do acervo histórico da instituição. Os deputados criticaram o que consideram descaso com o patrimônio histórico e cultural.

O obscurantismo cultural do governo Bolsonaro também atinge a Cinemateca, maior acervo de imagens em movimento da América do Sul e principal instituição de preservação da memória do cinema brasileiro, localizada em São Paulo.

Diversos protestos foram realizados por funcionários e entidades denunciando a crise na instituição por falta de recursos para o básico, incluindo salários, contas e contratos de segurança.

Por que chamar essas atitudes de fascismo?

Bolsonaro e membros da sua equipe revelam aversão à diversidade da população expressa em diferenças culturais, regionais, religiosas, de orientações políticas e sexuais.

Em posicionamentos que se apoiam em um nacionalismo que enxerga a sociedade como uma massa homogênea, combatem a livre expressão das reivindicações sociais e políticas e apelam quase sempre à violência. São comportamentos de governos com base no fascismo surgido na Europa nas primeiras décadas no século 20 e que ganhou força no mundo no período entre as duas grandes guerras mundiais.

O fascismo, articulado ao racismo científico e ao anticomunismo, criaram as condições favoráveis para a ascensão de Hitler na Alemanha, em 1933, e com ele a face macabra do nazismo. A perseguição às artes foi uma das obsessões dos delírios eugenistas de Hitler.

No filme Arquitetura da Destruição (1989), o diretor Peter Cohen demonstra a caçada travada por Hitler contra os artistas modernos. O documentário foca no extremo ódio do 'fuhrer', que confiscou centenas de obras consideradas deturpações e anomalias produzidas por mentes doentias.

Arquitetura da Destruição - Divulgação - Divulgação
Filme Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen (1989): o horror nazista tinha como justificativa a arte e a ciência
Imagem: Divulgação

Os produtores de arte não alinhados engrossaram as tristes fileiras dos campos de concentração.

A política da morte é outra característica semelhante ao atual governo genocida do Brasil. Genocida é outro adjetivo recusado pelo presidente, mas cada dia mais apropriado após mais de 530 mil vítimas da covid-19.

Mortes evitáveis se o governo não tivesse negado a gravidade da pandemia, divulgado tratamentos inúteis, estimulado aglomerações e desrespeito a medidas de prevenção e atrasasse a compra de vacinas.

Elevação espiritual e preocupações humanas

Em sua arquitetura de destruição, o nazismo se utilizou da mesma justificativa encontrada no parecer da Funarte, da exclusiva missão da arte de elevação espiritual e moral, imbuída de uma missão redentora de salvar a humanidade das impurezas.

A população brasileira que tanto aprecia os objetos artísticos e produtos culturais, especialmente neste momento pandêmico, sente o estímulo e provocação dos sentidos, sentimentos e espírito —função da arte quando esta também dialoga com preocupações urgentes e materiais de um povo, como a fome e a política.

A qualidade do jazz ofertado ao público do Capão não diminui quando o festival associa a visibilidade e mobilização provocada pelo evento a uma causa tão necessária hoje no país: a defesa da democracia e a luta antifascista. Pelo contrário, ganha ainda mais uma razão de existência.

Torna-se ainda mais necessária a sua realização e a sua importância como manifestação cultural e artística.

O incômodo do bolsonarismo é justamente por assumir, sem constrangimento, essa posição contrária à democracia e atrelada ao fascismo. Ou seja, em oposição ao que defende o Festival do Capão.

A carapuça coube muito bem.