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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Propaganda armamentista inspira distopia de um mundo sem pessoas pretas

Colunista do UOL

24/04/2022 04h00

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O vídeo em que os ex-gestores da Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro Mário Frias e André Porciúncula discursam incentivando o uso de recursos da Lei Rouanet para a propaganda armamentista é daquelas cenas que poderiam ser extraídas de roteiros distópicos sobre o fim do mundo.

A promessa foi feita no Congresso Nacional Pró-Armas, realizado em 28 de março pelo Movimento Pró-Armas em Brasília. Três dias depois, Frias e Porciúncula —então secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, responsável pela Lei Rouanet— deixaram o governo federal para disputar a próxima eleição.

O discurso revela que, enquanto perseguem artistas e demonizam as leis de incentivo cultural, os ex-assessores do presidente tentam explorar o poder de persuasão da cultura para divulgação ideológica, estratégia que tanto acusam os opositores.

Já tratamos aqui de como as atitudes bolsonaristas em relação às artes assemelham-se aos regimes nazistas que adotaram uma arquitetura da destruição.

Estimular que produtos culturais como documentários, filmes, webséries e podcasts sejam utilizados para propagar um discurso do armamento como garantia de liberdade para a civilização é parte de uma política de morte que vem sendo adotada no Brasil.

Assassinatos no Brasil tem cor, gênero e idade

De acordo com levantamento do Monitor da Violência, o Brasil contabilizou 41 mil assassinatos em 2021, mesmo com uma queda de 7% em comparação ao ano anterior.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado no ano passado, o Brasil dobrou o número de armas nas mãos de civis nos três anos do governo Bolsonaro.

Essa necropolítica, como definiu o filósofo camaronês Achille Mbembe, tem cor, gênero e idade. No Brasil, os assassinatos atingem majoritariamente jovens negros, moradores da periferia.

Lázaro Ramos nos bastidores do filme 'Medida Provisória'. - Divulgação - Divulgação
Lázaro Ramos nos bastidores do filme 'Medida Provisória'. Ele dirigiu também a peça que inspirou o filme
Imagem: Divulgação

Narrativas distópicas são alertas à humanidade

Cabe às artes a representação de mundos possíveis. Mas os artistas criam a partir dos sentimentos do agora. O momento atual inspira o medo do futuro diante do horror do presente.

A arte vem tentando alertar para o nível de violência e as consequências para o futuro ou o que restar dele. Todos os cenários imaginados são rapidamente alcançados e piorados pela realidade.

Em 2019, o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, nos apresentou o cenário de carnificina com a população armada, buscando a própria segurança e fazendo justiça com as próprias mãos. Realidade que se quer tornar possível ao substituir arte e cultura por mais armas.

Em cartaz nos cinemas, o filme Medida Provisória, de Lázaro Ramos, apresenta um Brasil no qual o acirramento dos conflitos raciais levou o governo autoritário a uma medida extrema de expulsar todos os negros do país, enviando-os compulsoriamente à África dos seus antepassados.

O filme apresenta uma realidade distópica, mas factível com o drama cotidiano de um país que rejeita sua maioria populacional.

Um mundo sem pessoas pretas

Nesta mesma proposta distópica sobre as nossas emergências civilizatórias, será lançado em maio o livro O rio do sangue dos meninos pretos (Editora Letramento), do escritor baiano Gabriel Nascimento.

A obra é uma saga policialesca que se passa em um mundo onde não existem pretos, apenas um rio grande e vermelho que cresce a cada dia.

A história gira em torno dos "com-cor" e "sem-cor". Na história, os sem-cor Tio Zito, Maria Raimunda e Rita decidem fugir após saberem que o rio que se expande a cada ano tem como nome "o rio do sangue dos meninos pretos".

Gabriel Nascimento, autor do livro O rio do sangue dos meninos pretos - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal

Gabriel Nascimento é doutor em Letras pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia. Em 2019, ele lançou Racismo Linguístico (Letramento), fruto das suas pesquisas sobre as complexidades da linguagem que estabelecem estruturas de desigualdades raciais.

No novo livro, ele envereda pela ficção para tentar dar conta de absurdos que a sociedade tem naturalizado, como os assassinatos frequentes de pessoas pretas.

É um romance histórico com narrativa novelesca que eu comecei a pensar quando passei a ver a quantidade de armamento que o Brasil tinha começado a importar no meio de uma grande guerra, uma guerra que leva ao genocídio de jovens inegavelmente negros, em especial os jovens pretos."
Gabriel Nascimento, professor e escritor

No livro, Gabriel faz uma denúncia sobre a indústria de armas e sobre o uso das tecnologias para acirrar a eliminação dos humanos que não possuem direito à vida.

Estamos falando de um país armamentista em que as armas, importadas de Israel e chamadas de 'Os Israel', eliminaram todos os corpos pretos e agora fazem uma eliminação em massa de corpos indesejáveis, os sem-cor. Com o falso objetivo de acabar com todos os crimes do país, Os Israel são drones equipados com armas de última geração que vasculham os indesejáveis e os eliminam."

O prefácio do livro é da escritora Eliana Alves Cruz, jornalista e colunista do UOL:

Repleto de referências à cultura negra afro-diaspórica, a saga policialesca é denúncia, mas também é instrumento para escalar o degrau da reflexão e chegar à ação. O clima opressivo que cerca as histórias dos personagens evoca às nossas próprias opressões e avoluma o desejo de libertação, pois se a indústria mortífera de corpos específicos é a gênesis da história imaginada para este livro, o desejo de liberdade é o delta sonhado para este rio. Uma terminação no lago ou no mar do que chamamos narrativa negra, aquela desenhada e idealizada para existência humana plena."

Em entrevista à coluna, Gabriel Nascimento destacou que seu livro se direciona às emergências do agora.

Essa narrativa tem tudo a ver com o momento distópico em que já vivemos, de onde não conseguimos sair. Uma distopia de um país hiper-racializado, cada vez mais racializado, onde pessoas pretas são cada vez mais vistas como indesejáveis."

A ausência total de pessoas negras talvez seja o sonho cruel tramado por grupos de poder que se disfarçam sob o discurso de liberdade.

Colocando uma lente de ampliação, os artistas estão tentando nos fazer enxergar os horrores civilizatórios em que vivemos. É um alerta. Ou paramos a fúria genocida do presente ou não estaremos aqui para imaginar um futuro possível.