Por que ironicamente novembro vem causando mal-estar em pessoas negras

Ontem foi o Dia Nacional da Consciência, data que celebra as lutas por liberdade e cidadania da população negra brasileira, descendentes dos africanos sequestrados e trazidos para o trabalho escravo no Brasil.
As redes sociais e o noticiário foram tomados por discursos contra o racismo, mensagens de igualdade, histórias de superação e o destaque para imagens de pessoas negras, que não são lembradas pela narrativa midiática ao longo do ano.
A ironia posta é que rostos, vozes e mentes que preenchem os espaços neste dia e ao longo do mês são pouco, ou nada, valorizados por quem promove essas campanhas e atividades ditas antirracistas.
A data foi criada pelo movimento negro brasileiro há 50 anos na busca pela conscientização das pessoas negras sobre sua própria história e as barreiras impostas pelo racismo para o acesso aos direitos.
Dia para buscar o conhecimento sobre a "dívida histórica construída pela supremacia branca", como afirmou o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), em cerimônia no Palácio do Planalto, para lançamento de ações antirracistas, como a política nacional quilombola e a valorização da cultura hip hop, importantes bandeiras do movimento negro brasileiro.
A data remete ao Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas, e a seu principal líder, Zumbi, que foi assassinado pelos colonizadores portugueses em 20 de novembro de 1695, após várias tentativas de destruição do mais resistente agrupamento de negros que se rebelaram à violência da escravidão.
Com o tempo, as atividades alusivas à data foram se espalhando para todo o mês de novembro. O que antes era exclusivo de grupos e organizações dos movimentos negros, ganhou adesão de governos, empresas privadas e veículos de comunicação.
São palestras, shows, campanhas institucionais e cursos de formação, que receberam o pedagógico nome de "letramento racial".
Todo mundo que falar sobre negros e racismo durante o novembro. Quase todo mundo, ainda tem quem não se aproxima do tema nem neste mês.
Convites sem remuneração
Artistas, ativistas e pesquisadores da temática das relações raciais se desdobram em muitos para dar conta das agendas de solicitações que visam pautar o racismo neste mês.
O problema é que muitas vezes são convites sem remuneração.
Ou seja, a pessoa que possui uma trajetória de envolvimento prático e/ou acadêmica com o racismo precisa dedicar mais tempo da sua difícil vida de pessoa negra para compartilhar seus conhecimentos, seu talento artístico e suas experiências de negritude de forma voluntária para que marcas e grupos empresariais ou governamentais posem de antirracistas no mês da consciência negra.
Pesa ainda saber que, em muitos casos, resultará apenas em fotos e postagens bem pontuais, sem mudanças estruturais que possam realmente eliminar práticas racistas da cultura organizacional.
Para as pessoas negras, certas atividades servem apenas para fazer mergulhar em lembranças de violências raciais, casos de preconceitos e exposições de barreiras encontradas na vida. São colocadas, em divã público, para a assistência pouco empática de quem não sente na pele o sofrimento cotidiano provocado pelo racismo.
Inconformados com essa situação, muitas pessoas negras passaram a expor o incômodo que essa prática oportunista tem gerado. Assim, novembro também passou a ser chamado: "Mês da Paciência Negra".
A escritora Luciene Nascimento, autora do livro "Tudo Nela é de se Amar", cunhou o termo Novembria, para expressar essa exploração da capacidade intelectual e artística de pessoas negras no mês de novembro, que não são convocadas como profissionais especializados na temática.
Precisei criar um termo para esse mal-estar tão característico que eu sinto todo ano quando o novembro se aproxima. Esse mal-estar se deve à profusão de pessoas que neste período me contatam porque se agradam do que eu faço e acreditam então que eu tenho uma missão e por ter uma missão eu devo trabalhar para elas, em qualquer circunstância, em qualquer lugar, a qualquer hora e gratuitamente.
Luciane Nascimento, escritora
Quem também utilizou as redes para reclamar sobre esse fenômeno da Novembria foi a apresentadora Rita Batista, do programa É de Casa, da Rede Globo. Assim como em outros anos, Rita Batista reafirmou que: "Assim como não é mulher apenas em março, também não é preta somente em novembro".
Luísa Sonza disse que precisou estudar para admitir o racismo
A cantora Luísa Sonza disse, em recente entrevista, da dificuldade de entender o racismo por ser uma pessoa branca e não viver na pele, e que precisou estudar muito para entender e aceitar que havia cometido um ato racista.
A cantora afirmou que gostaria de ter aprendido antes para evitar que cometesse atitudes como a que se envolveu em um hotel, quando tratou uma hóspede negra como funcionária, dando ordem.
O problema é que muitos brancos não estão dispostos a aprender sobre o tema, nem se interessam em conhecer obras que buscam compartilhar esse "letramento" e tirar dos ombros das pessoas negras e do mês de novembro, todo peso para discutir o problema do racismo.
A própria Sonza citou a importância da leitura do livro "Pequeno Manual Antirracista", da filósofa Djamila Ribeiro. Assim como este, há muitas produções em livros, vídeos, músicas e espetáculos cênicos à disposição de quem realmente quer contribuir com a causa.
E não precisa esperar novembro chegar somente no próximo ano. Dá para ler sobre o assunto em dezembro, convidar intelectuais negros para uma entrevista em janeiro, fazer campanhas contra o racismo em empresas ao longo do ano e promover shows de música negra em todas as estações, pois combinam muito bem com dias de sol ou tardes nubladas.
Urgente e necessário, esse debate precisa contar com todo mundo, o máximo de tempo.
Há uma persistente necessidade de continuarmos debatendo esse tema, para que mais pessoas brancas tomem conhecimento e assumam seu papel decisivo no combate ao racismo.
Como já escrevi nesta coluna: E se 20 de novembro fosse também o dia da consciência para os brancos? O texto continua atual e vale a pena continuarmos fazendo essa pergunta.
Além da consciência negra, é de uma consciência branca que precisamos, porque o poder de mudar está concentrado em mãos e mentes brancas.
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