André Santana

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Opinião

Liderada por muçulmanos, maior revolta negra do Brasil ocorreu há 190 anos

Na mesma semana em que se celebra o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro), uma outra data confirma que vem de longe a luta pela liberdade religiosa no Brasil.

Neste sábado, 25 de janeiro, a Revolta dos Malês completa 190 anos. Trata-se da maior rebelião urbana protagonizada por escravizados no país.

O termo malê, do iorubá imàle, era o nome dado aos africanos islamizados, sequestrados e trazidos ao Brasil pelo colonialismo português. Falavam árabe e liam o Corão, livro sagrado do povo muçulmano.

A Revolta dos Malês foi liderada por esses africanos muçulmanos, que além de sofrerem a violência da escravidão, sentiam a opressão por conta da religião considerada uma ameaça à hegemonia do catolicismo cristão.

Mais do que uma mera manifestação de insatisfação, a revolta simboliza a força de resistência dos povos escravizados, com apoio dos negros libertos, que reivindicavam liberdade, cidadania e o direito de exercerem suas práticas religiosas sem a repressão da coroa portuguesa.

Apesar da liderança muçulmana, entre os revoltosos havia negros de outras religiões, incluindo do culto aos orixás africanos, que no Brasil formou o Candomblé.

Centro de Salvador foi palco dos embates

Salvador, palco do levante, marcará a data com a instalação de uma placa que renomeia a Ladeira da Praça, no Centro Histórico, para Ladeira Revolta dos Malês.
Neste local aconteceram os confrontos na madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835, quando o grupo de insurgentes se reunia para executar as ações planejadas há meses, mas foi surpreendido por uma intervenção policial. Os planos foram descobertos,

A data escolhida pelos insurgentes marcava o final do Ramadã, mês dedicado à gratidão a Alá e à renovação de fé no Deus supremo dos muçulmanos.

A ladeira dá acesso à Praça Municipal, onde estão localizadas a Prefeitura, a Câmara Municipal e também o famoso Elevador Lacerda, nas proximidades do Pelourinho.



Um dos cenários de maior conflito foi a antiga cadeira pública, localizada no subsolo da Câmara Municipal. Lá estava preso um dos líderes do movimento, o escravizado Pacífico Licutan, entregue ao poder do Estado como pagamento de uma dívida do seu senhor.

Bem perto dali, na Praça da Sé, fica a sede da Associação Bahiana de Imprensa que também neste sábado, 25, receberá a maior autoridade sobre revoltas escravas no Brasil, o historiador João José Reis para uma palestra sobre os 190 anos da Revolta dos Malês.

Pesquisa pioneira sobre levantes negros

Reis é autor, entre outros, do livro que se tornou referência internacional sobre o tema, "Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835", resultado da sua tese de doutorado em História, lançado pela primeira vez em 1986 pela editora Brasiliense e reeditada em 2003, pela Companhia das Letras.

O professor na Universidade Federal da Bahia realizou uma densa pesquisa que destacou de forma pioneira a forma como os escravizados exerciam agência sobre suas vidas e buscaram a liberdade por meio de revoltas, uma visão ainda hoje ignorada por parte da historiografia.

Outra contribuição fundamental do trabalho de João José Reis é o estudo da escravidão no ambiente urbano, onde os escravizados teriam uma certa autonomia de circulação na cidade e dinâmicas para obtenção dos recursos para a compra da alforria.

João José Reis foi pioneiro ao revelar as estratégias da população escravizada pela liberdade
João José Reis foi pioneiro ao revelar as estratégias da população escravizada pela liberdade Imagem: Reprodução YT


Além de inspirar diversos outros trabalhados acadêmicos, a obra de João José Reis subsidiou o roteiro escrito por Manuela Dias para o filme Malês, dirigido e estrelado por Antônio Pitanga, que estreou em 2024.

O livro inovou por destacar o importante papel exercido pelos escravizados na busca pela própria liberdade, detalhado nas estratégicas criadas em torno do levante malê.

Repressão à Revolta

A revolta foi planejada em segredo por um grupo formado por africanos escravizados e libertos, muitos muçulmanos de origem iorubá/nagô, mas também de outras religiões e outros grupos étnicos africanos, que contava com uma organização sólida e escrita própria (em árabe e em iorubá), o que evidenciava sua diversidade e sofisticação cultural.

Os combatentes buscavam reverter o poder opressor exercido por uma minoria branca contra a maioria da população que, já naquela época, era formada por pretos e pardos. No início do século 19, Salvador tinha em torno de 65 mil moradores, sendo mais de 70% de negros. Desses, cerca de 42% ainda eram escravizados, mesmo com o fim da escravidão em diversas partes do mundo.

Pegos de surpresa pela repressão policial, por conta de uma denúncia, os revoltosos tiveram que antecipar suas estratégias e lutaram bravamente contra um forte poder militar detentor de armas de fogo. Calcula-se que mais de 60 negros foram mortos e outras três dezenas, entre inocentes, foram presos e receberam punições como prisão, chibatadas, pena de morte e até o degredo de volta à África.

João José Reis destaca que a repressão que se seguiu ao levante levou o terror à população africana na cidade de Salvador, em especial à religião islâmica. Foram promulgadas leis que proibiam africanos de adquirir bens imóveis, que previam deportação em massa, que obrigavam senhores a instruir seus escravos "nos mistérios da religião cristã e batizá-los", entre outras de semelhante teor antiafricano e criminalização da religião.

A Revolta dos Malês, ainda pouco conhecida no Brasil, é mais um dos exemplos de luta pela liberdade no Brasil e também das estratégias de resistência dos africanos e seus descendentes para reconstituir sua identidade neste país.

Neste caso, entre os diversos aspectos culturais e civilizatórios de heranças africanas, estavam em destaque a língua, a religiosidade e as formas de luta e resistência.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.