Liderada por muçulmanos, maior revolta negra do Brasil ocorreu há 190 anos
Na mesma semana em que se celebra o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro), uma outra data confirma que vem de longe a luta pela liberdade religiosa no Brasil.
Neste sábado, 25 de janeiro, a Revolta dos Malês completa 190 anos. Trata-se da maior rebelião urbana protagonizada por escravizados no país.
O termo malê, do iorubá imàle, era o nome dado aos africanos islamizados, sequestrados e trazidos ao Brasil pelo colonialismo português. Falavam árabe e liam o Corão, livro sagrado do povo muçulmano.
A Revolta dos Malês foi liderada por esses africanos muçulmanos, que além de sofrerem a violência da escravidão, sentiam a opressão por conta da religião considerada uma ameaça à hegemonia do catolicismo cristão.
Mais do que uma mera manifestação de insatisfação, a revolta simboliza a força de resistência dos povos escravizados, com apoio dos negros libertos, que reivindicavam liberdade, cidadania e o direito de exercerem suas práticas religiosas sem a repressão da coroa portuguesa.
Apesar da liderança muçulmana, entre os revoltosos havia negros de outras religiões, incluindo do culto aos orixás africanos, que no Brasil formou o Candomblé.
Centro de Salvador foi palco dos embates
Salvador, palco do levante, marcará a data com a instalação de uma placa que renomeia a Ladeira da Praça, no Centro Histórico, para Ladeira Revolta dos Malês.
Neste local aconteceram os confrontos na madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835, quando o grupo de insurgentes se reunia para executar as ações planejadas há meses, mas foi surpreendido por uma intervenção policial. Os planos foram descobertos,
A data escolhida pelos insurgentes marcava o final do Ramadã, mês dedicado à gratidão a Alá e à renovação de fé no Deus supremo dos muçulmanos.
A ladeira dá acesso à Praça Municipal, onde estão localizadas a Prefeitura, a Câmara Municipal e também o famoso Elevador Lacerda, nas proximidades do Pelourinho.
Um dos cenários de maior conflito foi a antiga cadeira pública, localizada no subsolo da Câmara Municipal. Lá estava preso um dos líderes do movimento, o escravizado Pacífico Licutan, entregue ao poder do Estado como pagamento de uma dívida do seu senhor.
Bem perto dali, na Praça da Sé, fica a sede da Associação Bahiana de Imprensa que também neste sábado, 25, receberá a maior autoridade sobre revoltas escravas no Brasil, o historiador João José Reis para uma palestra sobre os 190 anos da Revolta dos Malês.
Pesquisa pioneira sobre levantes negros
Reis é autor, entre outros, do livro que se tornou referência internacional sobre o tema, "Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835", resultado da sua tese de doutorado em História, lançado pela primeira vez em 1986 pela editora Brasiliense e reeditada em 2003, pela Companhia das Letras.
O professor na Universidade Federal da Bahia realizou uma densa pesquisa que destacou de forma pioneira a forma como os escravizados exerciam agência sobre suas vidas e buscaram a liberdade por meio de revoltas, uma visão ainda hoje ignorada por parte da historiografia.
Outra contribuição fundamental do trabalho de João José Reis é o estudo da escravidão no ambiente urbano, onde os escravizados teriam uma certa autonomia de circulação na cidade e dinâmicas para obtenção dos recursos para a compra da alforria.

Além de inspirar diversos outros trabalhados acadêmicos, a obra de João José Reis subsidiou o roteiro escrito por Manuela Dias para o filme Malês, dirigido e estrelado por Antônio Pitanga, que estreou em 2024.
O livro inovou por destacar o importante papel exercido pelos escravizados na busca pela própria liberdade, detalhado nas estratégicas criadas em torno do levante malê.
Repressão à Revolta
A revolta foi planejada em segredo por um grupo formado por africanos escravizados e libertos, muitos muçulmanos de origem iorubá/nagô, mas também de outras religiões e outros grupos étnicos africanos, que contava com uma organização sólida e escrita própria (em árabe e em iorubá), o que evidenciava sua diversidade e sofisticação cultural.
Os combatentes buscavam reverter o poder opressor exercido por uma minoria branca contra a maioria da população que, já naquela época, era formada por pretos e pardos. No início do século 19, Salvador tinha em torno de 65 mil moradores, sendo mais de 70% de negros. Desses, cerca de 42% ainda eram escravizados, mesmo com o fim da escravidão em diversas partes do mundo.
Pegos de surpresa pela repressão policial, por conta de uma denúncia, os revoltosos tiveram que antecipar suas estratégias e lutaram bravamente contra um forte poder militar detentor de armas de fogo. Calcula-se que mais de 60 negros foram mortos e outras três dezenas, entre inocentes, foram presos e receberam punições como prisão, chibatadas, pena de morte e até o degredo de volta à África.
João José Reis destaca que a repressão que se seguiu ao levante levou o terror à população africana na cidade de Salvador, em especial à religião islâmica. Foram promulgadas leis que proibiam africanos de adquirir bens imóveis, que previam deportação em massa, que obrigavam senhores a instruir seus escravos "nos mistérios da religião cristã e batizá-los", entre outras de semelhante teor antiafricano e criminalização da religião.
A Revolta dos Malês, ainda pouco conhecida no Brasil, é mais um dos exemplos de luta pela liberdade no Brasil e também das estratégias de resistência dos africanos e seus descendentes para reconstituir sua identidade neste país.
Neste caso, entre os diversos aspectos culturais e civilizatórios de heranças africanas, estavam em destaque a língua, a religiosidade e as formas de luta e resistência.