André Santana

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Opinião

Salvador pausa ensaios de Carnaval para reverenciar Caetano e Bethânia

O reencontro de Maria Bethânia, 78, e Caetano Veloso, 82, no palco da Arena Fonte Nova de Salvador, neste sábado (8) foi mais do que um bis: foi um rito de celebração. O público, que já havia se emocionado profundamente com a turnê que percorreu o Brasil em 2024, teve o privilégio de reviver essa experiência em uma noite de intenso calor do verão soteropolitano, ainda mais aquecido por afetos, memórias e canções repletas de simbolismos.

Os dois artistas, entre os mais importantes da história da música brasileira, subiram ao palco com a intensidade de quem entende a força do canto como um ato de amor e celebração. O repertório de mais de 60 anos de carreira foi um convite para que a plateia se perdesse e se encontrasse nas canções que desenham o Brasil pela arte.

O público de Salvador, formado tanto por moradores quanto por turistas que visitam a cidade no verão, interrompeu as lavagens e os ensaios preparatórios para o Carnaval para viver esse momento único. Um show que, como a folia momesca que a capital da Bahia sabe tão bem realizar, soube ser sagrado, profano e popular.

O Carnaval, aliás, se fez presente na festa em vários momentos, com os sambas de roda do Recôncavo, no ijexá dos Filhos de Gandhi e nos sambas-enredo da Mangueira, escola que, em 1994, celebrou os Doces Bárbaros e, em 2016, conquistou o título ao homenagear Maria Bethânia em "A Menina dos Olhos de Oyá".

Além da festa, o amor esteve no centro das cerca de 40 canções que formaram o setlist, com pequenas alterações ao do ano passado. No espírito de exaltação às próprias origens os irmãos trouxeram, logo no início, Alegria, Alegria", "Os mais doces bárbaros", onde afirma "nossos planos são muito bons" e "Objeto Identificado", também de Caetano Veloso, anunciando que cantariam "uma canção de amor". E o plano que entregaram foi muito mais: duas horas de celebração ao amor em suas múltiplas formas. Parecia que todas as canções eram sobre o amor ou, pelo menos, cheias de amor.

Houve amor ao Brasil e ao povo brasileiro; amor por Santo Amaro da Purificação, onde nasceram no Recôncavo da Bahia; amor pela matriarca Dona Canô; pela religiosidade da Bahia com seus santos e orixás; amor à Mãe Menininha e à sua filha, Mãe Carmem de Oxalá, que perpetua seu legado no Gantois, terreiro que os acolheu; amor aos amigos Gilberto Gil e Gal Costa e, claro, amor por Salvador, que os revelou ao mundo e continua os admirando com orgulho.

A cidade recebeu sua reverência através de "São Salvador", de Dorival Caymmi, em um momento de pura devoção. O talento percussivo de Salvador estava muito bem representado na excelente banda que acompanha os artistas pelo jovem músico Kainã do Jêje, uma das pérolas que brotam nos terreiros de Candomblé e mantem a riqueza musical da cidade.

Na dinâmica do show, os irmãos cantaram juntos, sozinhos sendo admirados um pelo outro, mas também tiveram seus momentos solos com o publico.

A voz potente e dramática de Maria Bethânia trouxe solenidade ao espetáculo, resgatando pérolas do cancioneiro popular que traduzem a vocação emocional do Brasil. Canções como "Negue", "Explode Coração" e "As Canções Que Você Fez Pra Mim" foram momentos de arrebatamento. A plateia foi ao delírio com cada gesto de entrega da abelha rainha aos sentimentos exaltados em seu poético repertório. Um pouco de chuva fina neste momento deu ainda mais ar de encantamento ao íntimo encontro do canto de Bethânia com a emoção da plateia.

Caetano, autor de boa parte do setlist, teve seu momento de maestro das vozes da multidão que cantou a plenos pulmões as músicas mais populares do seu repertório. Sucessos como as autorais "Leãozinho" e Você é linda"; "Você Não Me Ensinou a Te Esquecer", de Fernando Mendes; e "Sozinho", canção de Peninha que ele transformou em um de seus maiores sucessos. Ele mesmo confessou ao público: "nunca vendi tanto disco".

Ainda no bloco das músicas mais vendáveis, o louvor "Deus Cuida de Mim", do pastor progressista Kleber Lucas, que apesar de causar estranhamento em parte da plateia, fez sentido no contexto de canções de grande popularidade e apelo comercial. Um aceno à força da cultura evangélica no Brasil de hoje, tanto no mercado musical quanto no cenário cultural e político.

Em meio a tantas mensagens de fé, a conexão dos artistas com a nova geração da Música Popular Brasileira se fez presente em "Fé", de Iza, que, com bravura, irreverência (e até palavrões), trouxe uma mensagem de coragem e resistência, atitudes tão presentes na performance de Caetano e Bethânia desde a estreia na década de 1960, em meio às tensões de um país sob comando de uma ditadura militar.

Por mais extenso e completo, o show não conseguiria abarcar todo o imenso repertório de canções marcantes de ambos. A seleção foi muito exitosa e a costura foi bem orquestrada. Mesmo assim, dá para sentir a falta de músicas memórias como Fera Ferida e Um Índio, na voz de Maria Bethânia, ou o samba-reggae Luz de Tieta, de Caetano, tão sintonizado com esse tempo pré-carnavalesco de Salvador.

Ao fim, a missão foi cumprida. Após seis décadas de palcos, discos, prêmios e presença marcante na cultura brasileira, Maria Bethânia e Caetano Veloso continuam a emocionar multidões e a reafirmar por que são tão amados pelo Brasil e necessários para a cultura deste país. No palco de Salvador, a cidade amada que os revelou para o mundo, deixaram uma mensagem clara: "Tudo ainda é tal e qual, e no entanto nada é igual".

Na verdade do canto de Caetano e Bethânia, "A mesma grande saudade. A mesma grande vontade" deixada na plateia que, tomada pela emoção, se entregou à atmosfera ritualística de "Odara" (última canção do show), desejando que aquele momento jamais terminasse, que se eternizasse em seus corpos e que fosse breve o tempo para o próximo bis.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.