André Santana

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Opinião

Com mais uma chacina, violência supera o Carnaval na periferia de Salvador

Salvador mal teve tempo de descansar da maratona de trios elétricos ou de celebrar o título de maior Carnaval do mundo, oficializado pelo Guinness Book, e foi obrigada a encarar mais um triste episódio que reforça o recorde de violência que marca a capital baiana.

Uma operação da Polícia Militar da Bahia resultou no assassinato de 12 homens, entre 17 e 27 anos, no bairro de Fazenda Coutos, na terça-feira. A informação foi dada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, que afirmou que os mortos integravam uma facção criminosa.

Já os moradores falam em 14 vítimas, número que teria sido confirmado por funcionários do Instituto Médico Legal, de forma anônima, a um veículo da imprensa local. Os moradores também reiteram que algumas vítimas não teriam envolvimento algum com a criminalidade.

A versão oficial do governo do estado repete a justificativa do confronto e da resposta dos agentes, que teriam sido recebidos por grupos fortemente armados. Nenhum policial foi atingido. A tropa não utilizava câmeras no fardamento, uma reivindicação de especialistas e movimentos sociais, com comprovação científica na redução da letalidade, e que já conta com diretrizes do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

O poder público baiano se apoia na narrativa de guerra entre facções, atribuindo a chacina ao combate ao tráfico de drogas e proteção à comunidade. A operação policial, considerada pelas autoridades como "inadiável", teria sido motivada por uma série de violências praticadas no bairro por facções criminosas, aliadas a organizações do sudeste, que disputam território de venda de drogas em Salvador.

Mas os familiares das vítimas contestam a versão e o "cálculo" do horror. Não houve confronto, houve execução, algumas dentro de casas, dizem os moradores em denúncias que circulam nas redes.

Bolsonaristas elogiam ação policial

As recentes mortes entram para a triste lista de chacinas na cidade, entre elas: a do Cabula, em fevereiro de 2015, e a da Gamboa, ocorrida também no período carnavalesco, em 2022, além de outras dezenas de operações que resultaram em mais mortes que prisões.

O estado da Bahia, comandado pelo Partido dos Trabalhadores há 18 anos, ostenta o título vergonhoso de campeão nacional de homicídios e de letalidade policial.

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'Enfrentaram a polícia e por conta disso 12 tombaram', declarou o governador Jerônimo Rodrigues (PT), prometendo investigação sobre possível exagero dos policiais.

Além do governador, a ação foi aprovada por deputados baianos do PL, partido do ex-presidente Bolsonaro. Um deles chegou a propor uma moção de aplausos da Assembleia Legislativa da Bahia ao policiais envolvidos na operação.

O apoio de parlamentares bolsonaristas à mais uma chacina da gestão petista comprova o que já escrevemos, em algumas oportunidades: a violência policial associada ao racismo iguala a política de segurança pública da Direita e da Esquerda.

Como destacou o professor de direito da Universidade Federal da Bahia, Samuel Vida, a chacina de Fazenda Coutos escancara "o modus operandi de uma segurança pública fundamentada no terror racial e na matança de negros".

A justificativa de confronto entre facções é um clichê institucional que sustenta a política de guerra às drogas e legitima execuções sumárias. A pena de morte, rejeitada pelo ordenamento jurídico brasileiro, se consolida na prática pelas mãos do Estado baiano.

População registra violência policial no Carnaval

Algumas figuras da imprensa e da política continuam a reproduzir exclusivamente a versão oficial e a celebrar a ação 'firme' dos agentes públicos, mas não convencem quem vive nas periferias. Os moradores já não sabem o que mais gera medo: as disputas entre os criminosos ou a violência fardada financiada pelo Estado.

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Não há mais pudor em preservar a imagem de uma instituição nascida para caçar escravizados, reprimir negros libertos e proteger o patrimônio das elites. Na vitrine de visibilidade que é o Carnaval de Salvador, os celulares acabaram de flagrar diversas cenas de violência policial contra foliões, especialmente em corpos negros.

Esse comportamento desproporcional à alegria da festa parece querer lembrar aos jovens que o Carnaval não altera a cor de pele e nem a fúria do Estado em reprimir existências negras.

Neste Carnaval também foram registradas as reações de repúdio e vaias à corporação policial. Mesmo em atrações tão diversas como o desfile do Navio Pirata da Baiana System, o ritual de saída do bloco afro Ilê Aiyê ou a Pipoca de Igor Kannário, houve semelhança na reprovação da ação excessiva dos agentes de segurança.

Nada parece frear essa política institucional de violência e morte.

A chacina de Fazenda Coutos ecoa a Chacina do Cabula, ocorrida há exatamente dez anos. Naquela ocasião, 12 jovens negros, entre 16 e 27 anos, foram executados por policiais militares em uma operação denunciada pelo Ministério Público da Bahia como motivada por vingança por parte da tropa. Dias antes, um oficial havia sido baleado no bairro.

A perícia apontou 143 disparos, 88 certeiros, a maioria em ângulos que indicavam execuções à queima-roupa. Nove policiais foram indiciados, mas o caso permanece sem solução definitiva, protegido pelo véu do segredo de justiça. Os envolvidos seguem em atividade.

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A pergunta que fica é: chacinas como essas, consideradas operações planejadas e exitosas, reduziram a criminalidade ou trouxeram segurança para essas populações periféricas?

O poder público não consegue apresentar uma outra política contra o crescimento do crime organizado que não sejam essas operações que levam terror e mortes para comunidades já tão vitimadas pela violência.

Enquanto isso, a população, inebriada pelo som ensurdecedor do Carnaval e pela necessidade de anestesiar suas dores e frustrações na folia, tenta sustentar a fantasia de normalidade, sem saber onde e quando virá mais vítimas na macabra estatística de mortos pelo genocídio institucionalizado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.