Trabalho análogo à escravidão é naturalizado no Carnaval de Salvador
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O Ministério do Trabalho e Emprego responsabilizou a Prefeitura de Salvador e a cervejaria Ambev pelas condições degradantes impostas a vendedores ambulantes durante o Carnaval, consideradas análogas ao trabalho escravo.
A decisão recente escancara uma realidade sistematicamente ignorada e há muito conhecida por quem circula na cidade, especialmente no verão.
A exploração da mão de obra informal e precarizada não é um fenômeno pontual da festa, mas uma estrutura permanente que se manifesta com maior intensidade nos dias de folia, refletindo a lógica escravocrata que ainda rege as relações de trabalho na cidade.
Os cordeiros, responsáveis por segurar as cordas dos blocos e separar os foliões pagantes dos chamados "pipocas", também são vítimas desse sistema de exploração.
Todos os anos, eles enfrentam condições desumanas, lutando para garantir o mínimo: equipamentos de proteção, acesso à água e remuneração digna.
São trabalhadores exaustos, muitas vezes submetidos a jornadas extenuantes, expostos ao calor escaldante, à chuva e à pressão da multidão. Ainda assim, a exploração desses profissionais é romantizada sob o discurso da "oportunidade" e da "inclusão".
Há também todo um contingente de catadores de latinha, incluindo crianças e idosos, que circulam em meio aos blocos e foliões, retirando do chão, das poças d´água e do lixo uma fonte mínima de renda numa festa que movimenta cifras milionárias.
Neste caso, há ainda um discurso da sustentabilidade ambiental e redução de resíduos na festa propagada pelo poder público às custas desse trabalho degradante.
A naturalização dessas formas de trabalho no Carnaval soteropolitano não é um acaso.
A cidade, que foi um dos maiores portos de chegada de africanos escravizados no Brasil, ainda carrega em suas estruturas econômicas e sociais resquícios profundos desse passado.
O trabalho informal é a regra para grande parte da população negra e pobre de Salvador, não apenas durante a festa, mas ao longo de todo o ano. O que ocorre no Carnaval é apenas um reflexo mais visível dessa desigualdade estrutural.
Os altos índices de desemprego e a crescente informalidade no mercado de trabalho da capital baiana precariza relações de trabalho já marcadas historicamente pela exploração da mão de obra de forma desumana.
Essa situação prejudica ainda mais os setores de serviço e o turismo, que poderiam ser fontes importantes para o desenvolvimento de uma cidade com muitos atrativos culturais, naturais e festivos.
Mas a conta não fecha, pois trabalhadores mal remunerados e nada valorizados dificilmente oferecem atendimentos de qualidade ao público.
O argumento de que esses trabalhadores encontram na folia uma oportunidade de gerar renda é falacioso.
Se a venda de bebidas ou o trabalho como cordeiro se tornam as únicas alternativas viáveis para milhares de pessoas, isso revela uma falta de políticas públicas que garantam condições dignas de vida.
O possível benefício dessa inserção laboral é apenas aparente: trata-se de uma força de trabalho que não tem outra escolha senão se submeter a condições desumanas, sem direitos garantidos, sob a égide da informalidade.
Se Salvador deseja celebrar sua cultura e sua festa sem reproduzir violências históricas, é urgente que se rompa com essa estrutura de exploração.
No caso dos ambulantes, famílias inteiras se mudam para as ruas do Carnaval por mais de uma semana, dormindo no chão, se protegendo com papelão ou lona, com limitadas condições de higiene e alimentação e jornadas extenuantes, de até 20 horas por dia.
Se não bastasse assa situação degradante, ainda sofrem a ação de funcionários da Prefeitura de Salvador que agem para garantir a exclusividade na comercialização dos produtos da cervejaria patrocinadora. Assim, mercadorias são forçadamente retiradas, aumentando a violência e o prejuízo econômico aos trabalhadores.
A autuação do Ministério do Trabalho e Emprego sobre a aliança entre a Prefeitura e a cervejaria, exigindo a formalização do vínculo empregatício e o pagamento dos direitos trabalhistas aos ambulantes, deve ser um marco para reavaliar a forma como a cidade encara o respeito aos trabalhadores e as oportunidades de atuação no Carnaval.
Além de responsabilizar empresas e gestores, é necessário construir mecanismos que garantam condições dignas a esses profissionais.
Caso contrário, o Carnaval de Salvador continuará a ser uma festa que se sustenta sobre o suor e a dor de quem não tem alternativa.