'Piada' de ministro do STJ prova como racismo está enraizado no Judiciário
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Ontem, o ministro do STJ João Otávio de Noronha, em tom de "piada", proferiu uma fala preconceituosa sobre baianos durante uma sessão de julgamento. A suposta "brincadeira" associou baianos à lentidão e à preguiça, o que não tem base alguma na realidade.
A fala carrega consigo um histórico de racismo e discriminação que persiste em nossa sociedade, especialmente na mente, discursos e atos de representantes das elites de poder deste país.
Para comprovar o absurdo desta relação dos baianos com a preguiça basta comparar a quantidade de horas dedicadas ao trabalho de um cidadão comum da Bahia com profissionais de certos serviços públicos, especialmente aqueles concentrados em Brasília, por exemplo.
Associação tem raízes na escravidão
Em sua conta no X (antigo Twitter), o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), se manifestou dizendo ser estarrecedor "em pleno 2025, uma autoridade reproduzir um estereótipo preconceituoso". "[A fala] não pode ser considerada apenas uma piada de mau gosto; é xenofobia pura."
Mas a gente precisa ir mais fundo nessa história. A associação dos baianos à preguiça, na verdade, tem raízes na colonização e na escravidão.
Durante séculos, a Bahia foi um dos principais centros do tráfico de pessoas escravizadas. Considerar preguiça a recusa ao trabalho desumano e violento que era exigido aos escravizados era uma das formas de manter o discurso da escravização e se opor a leis abolicionistas.
Esse estigma de preguiça foi uma construção racista utilizada para deslegitimar e inferiorizar os descendentes dos africanos escravizados que foram responsáveis por grande parte da riqueza gerada na região.
No Centro Histórico de Salvador, a Ladeira da Preguiça, já cantada inclusive em música de Gilberto Gil, expressa muito bem como a elite racista inverte a lógica dos fatos e perpetua os preconceitos que se mantêm, ainda hoje, alimentando "piadas" como a do ministro do STJ.
Ao presenciar, das janelas dos seus casarões, os negros escravizados penando para subir a íngreme ladeira que ligava o porto de Salvador à cidade alta, com mercadorias no lombo, os senhores ricos (esses, sim, não afeitos ao trabalho braçal) gritavam: "Deixem de preguiça, subam logo".
Sem escravidão, mas exploração
Não é preciso ir muito longe para ver as semelhanças do comportamento da classe elitista do período escravocrata com o de patrões que, hoje, não oferecem condições dignas de trabalho e remuneração aos trabalhadores, mas cobram produtividade em jornadas excessivas, além de se sentirem no direito de considerar seus empregados preguiçosos.
O que muitos não percebem —ou fingem não perceber— é que os baianos trabalham incansavelmente, especialmente para atender turistas de outros estados e países que buscam descanso e lazer nas terras baianas.
A Bahia é um dos destinos turísticos mais movimentados do Brasil e, para que essa indústria continue funcionando, há um exército de trabalhadores garantindo a estrutura hoteleira, eventos, festas, comércio e gastronomia.
Há uma semana, repercutíamos, inclusive, a ação do Ministério do Trabalho e Emprego que autuou a Prefeitura de Salvador e uma cervejaria pelo tratamento dado aos vendedores ambulantes do Carnaval, considerado um trabalho análogo à escravidão.
Pergunto ao ministro: o que há de preguiça no trabalho de ambulantes, cordeiros e catadores de latinha que atuam na maior festa popular do Brasil?
Vale também citar que a Bahia abriga o Polo Petroquímico de Camaçari, um dos mais importantes da América Latina, que desempenha um papel essencial na produção industrial e na economia do país.
A Bahia é terra de profissionais de diversas áreas, sobretudo na rica e dinâmica indústria criativa da arte e da cultura, com empreendedores, artistas e produtores que contribuem significativamente para o desenvolvimento do Brasil.
Não podemos esquecer os milhares de baianos que se espalham pelo país, especialmente no Sudeste, onde realizam trabalhos pesados essenciais em diversas áreas, junto com nordestinos de outros estados, movimentando a economia e garantindo o funcionamento de grandes cidades.
Quando uma autoridade da mais alta instância do Judiciário desqualifica um povo com um comentário carregado de preconceito, ele valida a discriminação e contribui para a perpetuação das desigualdades históricas que afetam milhões de brasileiros.
Ministro, sua piada não tem graça nenhuma. Respeite os baianos.
Para finalizar, confesso ver uma ironia nada feliz no fato de que, há poucos dias, os brasileiros se revoltaram com a fala xenofóbica do presidente da Conmebol, que comparou os times brasileiros à macaca Chita, que integra o enredo do personagem de ficção Tarzan.
Como podemos cobrar respeito de estrangeiros, se dentro de nosso próprio território uma autoridade do sistema judiciário perpetua discursos preconceituosos contra uma parcela significativa da população, mas não nos indignamos na mesma proporção?