André Santana

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Opinião

Paixão de Cristo na Bahia une tradições cristãs e afro-brasileiras

O calendário cristão é marcado por duas datas centrais que relembram o início e o clímax da vida de Jesus Cristo: o Natal, que celebra seu nascimento, e a Sexta-Feira Santa, que marca sua paixão e morte na cruz.

Ambas têm enorme importância simbólica para a fé cristã, mas, ao longo do tempo, tomaram caminhos distintos na forma como são vividas e apropriadas pela sociedade — especialmente sob a influência do capitalismo.

O Natal foi capturado pelo consumo. Com a bênção da Coca-Cola e a roupagem vermelha do Papai Noel, tornou-se uma festa do presente, da roupa nova, das frutas secas e dos pratos importados que pouco dialogam com a realidade tropical e cultural do Brasil. É uma festa moldada por um imaginário do Norte global: pinheiros, neve, castanhas, perus e o misterioso chester — ave que ninguém jamais viu viva, mas que reina nas mesas natalinas.

Já a Sexta-Feira Santa, por sua vez, representa a dor, o silêncio e o sacrifício. O cristianismo escolheu a cruz, e não a manjedoura, como símbolo máximo da fé.

A fé cristã se ancora na dor redentora, no sofrimento como caminho para a salvação. Como lembra Umberto Eco em "O nome da rosa", o riso é subversivo, desobediente. A tristeza, ao contrário, fortalece os alicerces da fé.

"O riso mata o medo, e sem medo não pode haver fé. Aquele que não teme o demônio não precisa mais de Deus", explica o abade ao investigador franciscano William de Baskerville, que tenta desvendar os misteriosos crimes ocorridos em um monastério na Idade Média, envolvendo o livro de Aristóteles sobre a comédia.

Contudo, na Bahia, sobretudo em Salvador e nas cidades do Recôncavo, essa narrativa é ressignificada. A Sexta-Feira Santa é, paradoxalmente, um dia muito alegre e comunitário. Ao invés do jejum e do silêncio, as mesas se enchem de comida farta, os lares se enchem de gente e de riso.

É dia de reencontrar a família e os amigos antigos, por isso, muita gente pega a estrada rumo ao interior do estado e outros tantos retornam à Bahia de cidades do Sudeste buscando reativar a memória afetiva dos sabores e das alegrias familiares.

É dia de peixe, moqueca, caruru, vatapá, feijão-fradinho com camarão seco, feijão de leite, frigideira de bacalhau e muito azeite de dendê — um cardápio profundamente conectado com as raízes afro-brasileiras e com as tradições religiosas de matriz africana.

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Muitos pratos da Semana Santa já integram as tradições religiosas do candomblé e da umbanda, é comida votiva, compartilhada entre devotos e divindades. É uma celebração que reconhece a morte como parte da vida e, por isso, a envolve em festa.

Nos bairros mais populares há o "baba do vinho", com homens de saia jogando futebol em tom de sátira e irreverência. A farra continua no Sábado de Aleluia, com a queima do Judas e a leitura do testamento cômico, cheio de crítica social e deboche político. Até chegar ao Domingo de Páscoa com chocolate para curar a ressaca do vinho.

São manifestações que dialogam com a tradição católica, relembram ensinamentos de Cristo em seus gestos simbólicos e sacrifícios ao se aproximar da morte, reafirmam sua divindade com a ressurreição, mas também a expandem, a tropicalizam, a reinventam.

Além do vinho, a mesa da Sexta-Feira Santa celebra o peixe e outros frutos do mar, uma opção que, além do componente religioso da penitência de afastar-se da carne, é muito coerente na Bahia, estado que possui o maior litoral do Brasil e a segunda maior baía do mundo.

Uma riqueza cultural e econômica ainda pouco valorizada pelas políticas públicas de desenvolvimento do estado, como bem denuncia a líder quilombola Eliete Paraguaçu, atual vereadora de Salvador.

As heranças africanas nos legaram a celebração da morte, especialmente dos bem lembrados, cuja trajetória em vida enaltece sua existência, como é o caso de Jesus Cristo. Portanto, a Sexta-Feira da Paixão é um acontecimento de união familiar, celebração comunitária, renovação da esperança e dos prazeres da boa mesa.

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Na Bahia, a Sexta-Feira Santa não é apenas memória da dor. É a memória do afeto, da resistência e da ancestralidade. É uma data que, mais do que o Natal, parece pulsar com a verdade de um povo que sabe celebrar a vida mesmo na hora da morte. E que, ao redor da mesa, entre o vinho e o dendê, reafirma sua fé, sua cultura e sua identidade.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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