André Santana

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Opinião

Para nunca esquecer o pensamento e obra de Abdias do Nascimento

Estreou no dia 24 de abril, no Teatro Sesc Copacabana,, no Rio, um espetáculo em homenagem a Abdias do Nascimento (1914-2011), um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século 20.

Escritor, poeta, dramaturgo, ator, político, artista plástico e ativista, Abdias teve uma trajetória marcada por dedicação ininterrupta à luta contra o racismo, à valorização da cultura negra e à construção de espaços de protagonismo para os negros nas artes e na política.

Com texto de Ivan Jaf e Diego Ferreira, e direção de Johayne Hildefonso e Iléa Ferraz, a montagem propõe um jogo metalinguístico: dois atores, Lincoln Oliveira e Paulo Guidelly, encenando a criação de uma peça sobre Abdias. O recurso cênico revela de forma envolvente tanto os desafios dos atores em reverenciar essa grande referência e também os desafios enfrentados por Abdias como homem negro em uma sociedade racista. Estão em cena, desde episódios de preconceito, violência policial, perseguição política, à atuação como deputado e senador, as denúncias no exterior durante o exílio e o despertar para a militância artística.

Entre os episódios retratados está a fundação, em 1944, do TEN (Teatro Experimental do Negro), marco incontornável na história das artes cênicas brasileiras. Criado após Abdias assistir a uma montagem em Lima (Peru) em que um ator branco pintava o rosto de preto para interpretar o protagonista da peça "O Imperador Jones", do dramaturgo americano Eugene O'Neill, o TEN surgiu como reação ao racismo estrutural no teatro e se propôs a formar e dar espaço a atores negros de verdade.

A companhia levou ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro o primeiro espetáculo protagonizado por artistas negros, em 1945. Antes, o negro só havia pisado naquele palco na condição de faxineiro.

No TEN emergiram nomes fundamentais para a cultura nacional, como Ruth de Souza, Léa Garcia, Haroldo Costa e Aguinaldo Camargo. "Ainda somos Teatro Experimental do Negro, com todas as dificuldades de espaço e de apoio para encenarmos nossas histórias", afirma a veterana Iléa Ferraz. "Abdias foi um homem à frente do seu tempo e trouxe denúncias que ainda hoje precisamos colocar no palco", completa.

Além do Sesc Rio, a peça também conta com o apoio do Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros), que preserva o legado de Abdias.

Presente à estreia, Elisa Larkin Nascimento, viúva do homenageado e diretora do Instituto, anunciou o relançamento do livro Teatro Experimental do Negro - Testemunhos, previsto para setembro.

Publicado originalmente em 1966, o livro reúne textos, imagens e críticas sobre a trajetória do TEN, em tributo à primeira apresentação pública em 8 de maio de 1945 e aos artistas Arinda Serafim e Aguinaldo de Oliveira Camargo, que protagonizaram a montagem de estreia. A nova edição será lançada em setembro deste ano.

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Felizmente, o mercado editorial brasileiro tem reeditado obras como Genocídio do Negro Brasileiro e Quilombismo, que revelam como o pensamento de Abdias do Nascimento vai além do recorte racial, e nos ajudar a entender o Brasil com suas contradições.

Este mês foi lançado" Abdias, Intérprete Do Brasil", organizado pelo sociólogo e pesquisador Tulio Custódio, que resgata textos pouco conhecidos, alguns escritos originalmente em inglês e traduzidos para essa edição. Mais uma obra inspirada pela vasta e inesgotável fonte de criações de Abdias do Nascimento.

O pensamento de Abdias também inspira novas gerações de artistas. Vale destacar o compromisso em difundir o pensamento de Abdias do ator, diretor e dramaturgo Ângelo Flávio, que em 2004 fundou a Companhia de Teatro Negro Abdias do Nascimento (CAN).

Além de premiadas montagens, em 2014, por ocasião do centenário de nascimento de Abdias, a companhia realizou uma leitura dramática de peças históricas do TEN, entre elas Sortilégio II - Mistério Negro de Zumbi Redivivo, escrita e dirigida por Abdias.

Em cartaz até 18 de maio, de quinta a domingo, às 19h, no Sesc Copacabana, Abdias do Nascimento é mais do que um espetáculo. É uma convocação à memória e à resistência.

Uma excelente oportunidade para conhecer e reverenciar um dos mais importantes pensadores brasileiro, cujas ideias e ações contribuíram decisivamente para os debates atuais sobre as condições do negro e o combate ao persistente racismo na sociedade brasileira.

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Como o próprio espetáculo apresenta, na cultura bantu, a pessoa morre pela segunda vez quando deixa de ser lembrada pelo seu povo. Em um país onde os artistas negros ainda enfrentam barreiras estruturais para ocupar a cena, revisitar o legado de Abdias é reafirmar que a luta por direitos fundamentais e justiça racial permanece urgente e viva, assim como a memória de Abdias do Nascimento.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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