Protagonismo retinto de Clara Moneke rompe exclusão histórica
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A estreia da telenovela Dona de Mim, protagonizada por Clara Moneke, é um marco que vai além da simples renovação da grade de programação da Rede Globo.
Com o crescimento da presença negra na tv, nas produções da dramaturgia e no jornalismo, e o fato inédito das três principais telenovelas no ar na maior emissora do país serem protagonizadas por atrizes negras, estamos vendo uma quantidade maior de personagens negros nas produções.
Agora o avanço se torna ainda mais significativo com o protagonismo de Clara Moneke, uma mulher preta retinta. Trata-se de uma representatividade rara na televisão brasileira.
É uma conquista simbólica em uma história de apagamentos e invisibilidades. A presença de Clara Moneke como protagonista carrega o peso histórico de uma ruptura.
Em um país onde o padrão de beleza e protagonismo televisivo sempre privilegiou a branquitude e, quando muito, uma representação negra atrelada à "passabilidade racial", ver uma mulher retinta no centro da trama rompe imaginários profundamente arraigados.
Mesmo nas poucas representações anteriores de pessoas negras na teledramaturgia, papéis de destaque quase sempre recaíram sobre atrizes de pele mais clara e traços físicos que se ajustavam ao que o racismo permitia aceitar como "palatável".
É preciso reconhecer o mérito da autora Rosane Svartman, responsável por Dona de Mim, que tem se destacado como uma das roteiristas mais comprometidas com a inclusão de narrativas diversas na teledramaturgia brasileira.
O sucesso recente de Vai na Fé, também de sua autoria, já havia demonstrado como é possível unir audiência, dinamismo narrativo e compromisso social. Svartman tem se mostrado sensível não só às questões raciais, mas também às pautas ligadas à religiosidade e às deficiências, compondo um retrato contemporâneo da sociedade que costuma ser ignorado por tantas produções ainda presas aos modelos do passado.
A expectativa de que a construção da personagem terá o cuidado e capricho no texto que fará ressaltar as qualidades artísticas da intérprete, assim como estamos acompanhando Alessandra Poggi fazer em Garota do Momento e assistimos em Volta por Cima, escrita por Claudia Souto. Sensibilidade que faltou em outras autorias que destacaram personagens negras sem o devido protagonismo.
Esse novo momento contrasta de forma gritante com as novelas consideradas "clássicas" da televisão brasileira.
Produções neste momento em evidência, como Tieta e Vale Tudo, ambas do final da década de 1980 e lembradas por sua excelência narrativa e repercussão popular, praticamente ignoraram a existência de pessoas negras em seus enredos.
A ausência não era acidental, fazia parte de uma lógica estrutural que reservava à população negra o lugar do silêncio ou da subalternidade. Uma realidade que se repetiu nas décadas seguintes, até mudanças recentes, impulsionadas por movimentos sociais, artistas conscientes e vozes críticas que se recusaram a aceitar o apagamento. E, óbvio, um interesse comercial por esse público consumidor representado, que ganha valor no mercado da mídia.
Aos poucos, atrizes negras passaram a conquistar espaços com muito esforço, quase sempre precisando provar não só seu talento, mas sua capacidade de resistir.
Algumas foram vistas como exceções à regra, outras foram alçadas a esses espaços por atenderem a exigências racistas de aparência e comportamento. Outras como representações "tokenizadas", em que a presença negra é simbólica e enquadrada e não altera a lógica de protagonismo ditado pela branquitude.
Ainda assim, esses pequenos espaços, defendidos com muita dignidade pelas artistas, serviram para abrir portas — muitas vezes escancaradas por talentos negros que aliam arte, ativismo e consciência racial.
Clara Moneke representa uma virada. Sua presença é um reconhecimento de potência, de talento, de beleza e de uma urgência social.
Em momento de tensões em torno do debate sobre colorismo racial, heteroidentificação e usos oportunistas do termo pardo, sua retinta presença é inegociável e seu protagonismo é um gesto de afirmação.
"Eu esperei a vida inteira para assistir uma mulher negra nesse tom de protagonista. O grande Abdias Nascimento e todas as cabeças que construíram o Teatro Experimental do Negro reverberam o engajamento antirracista de Léa Garcia, Zezé Mota, Tais Araújo, Bella Campos, Camilla Pitanga e toda a diversidade em negritude. Das mais velhas até Clara Moneke", saudou Carla Akotirene em seu perfil no Instagram.
A intelectual Carla Akotirene, também de pele retinta, nos lembra que é preciso pensar a interseccionalidade entre racismo, machismo e pobreza, especialmente quando esses vetores de opressão recaem sobre mulheres pretas retintas — justamente as mais invisibilizadas e mais vulnerabilizadas em nossa sociedade.
A televisão, enquanto formadora de imaginário coletivo, tem o dever de romper com essas lógicas e propor novas possibilidades de existência, representação e centralidade.
O extremo talento e carisma demonstrados na atuação em novelas anteriores (Vai na Fé e No Rancho Fundo) somaram-se a um momento de exigência por representatividade, resultado de lutas, tensões e reivindicações históricas.
Clara Moneke é filha de mãe brasileira e pai nigeriano. Sua presença na TV carrega em si a memória diaspórica, o elo ainda tão negado entre o Brasil e a África. E há um simbolismo que não pode passar despercebido: uma mulher de pele escura chamada Clara, iluminando as noites brasileiras com sua imagem, seu brilho e sua história. Em um país onde a retinta é sistematicamente apagada, Clara ressignifica o próprio nome — ela clareia uma televisão que por tanto tempo refletiu apenas os rostos autorizados pelo racismo estrutural.
A presença de Clara Moneke como protagonista é, portanto, uma conquista coletiva. É sobre abrir caminho para outras Claras, para outras histórias, para outras centralidades. É sobre transformar não só o que vemos na tela, mas também o que passamos a considerar possível.
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