André Santana

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Reportagem

Comitiva internacional vê avanços e contradições raciais em Salvador

Considerada a cidade culturalmente mais negra do Brasil, Salvador também carrega o peso de ser uma das capitais onde a população negra enfrenta os maiores índices de violência motivada pelo racismo.

Essa contradição, muitas vezes não percebida aos olhos dos turistas, foi cuidadosamente observada por uma comitiva internacional de lideranças comprometidas com a justiça racial, que integram o SCoRE (Solidarity Council on Racial Equity); em português, Conselho de Solidariedade para a Equidade Racial — iniciativa global da Fundação W.K. Kellogg. O grupo visitou a capital baiana no início de maio.

A missão do grupo foi conhecer experiências locais de enfrentamento ao racismo e promoção da equidade racial. Entre os visitantes, esteve a afro-americana LaJune Montgomery Tabron, presidente da Fundação Kellogg, também primeira mulher a ocupar o cargo de CEO da instituição, que completou 95 anos de atuação filantrópica internacional.

Em entrevista à coluna, Tabron ressaltou a riqueza dos encontros e a importância da articulação global. "Estamos vendo uma reação organizada contra os avanços das políticas antirracistas. Se há uma pressão sobre nós é porque nos consideram uma ameaça. A resposta precisa ser igualmente global e solidária".

Tabron observou que, apesar das especificidades regionais, há desafios comuns nas comunidades negras ao redor do mundo. "Todas essas comunidades vivenciaram a colonização e isso aparece na falta de oportunidades, no desrespeito à cultura e à comunidade, e em estruturas que impedem a prosperidade, como o encarceramento em massa, o acesso precário à educação formal e governos que não representam a população que governam".

Investimentos em políticas de equidade

O histórico de atuação da Fundação W.K. Kellogg em equidade racial inclui o apoio à luta pelos direitos civis nos Estados Unidos no final da década de 1960 e aos movimentos contra o apartheid na África do Sul na década de 1980.

No Brasil, a organização privada foi fundamental para a criação de iniciativas como o SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), criada em 2021, onde aportou U$10 milhões. Antes, o Fundo Baobá para Equidade Racial, iniciado em 2011, recebeu investimentos de U$25 milhões. Neste caso, a Kellogg lançou o desafio de que, a cada dólar captado pelo fundo brasileiro, a fundação investiria dois dólares, incentivando que outras fundações e empresas privadas investissem nos projetos brasileiros de justiça racial e equidade.

LaJune Montgomery Tabron é a primeira mulher a comandar a Fundação Kellogg
LaJune Montgomery Tabron é a primeira mulher a comandar a Fundação Kellogg Imagem: Ariadne Ramos
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Salvador mantém graves contradições raciais

Um dos momentos mais simbólicos da visita foi o encontro com a comunidade do quilombo Pitanga de Palmares, na Região Metropolitana de Salvador, onde viveu a ialorixá Maria Bernadete Pacífico, assassinada em 2023, em sua casa. A comitiva ouviu relatos da população local, que reivindica a construção de uma escola e denuncia que o único investimento governamental efetivado no território foi uma penitenciária.

"Ainda há uma agenda que não promove oportunidades reais. Se houvesse esse compromisso, o Estado teria construído uma escola ali. Nenhum de nós pode ser complacente", alertou Tabron.

Salvador foi escolhida por representar, além da historia de dor e resistência, um polo de inovação social e cultural protagonizado pela população negra. Foram visitadas iniciativas como a Sociedade Protetora dos Desvalidos, criada em 1832 e considerada a primeira associação civil negra do Brasil, e o Terreiro da Casa Branca, o mais antigo do país e primeiro templo religioso não católico a ser tombado pelo IPHAN como patrimônio histórico.

Durante os encontros, os membros do SCoRE reforçaram a urgência de políticas públicas eficazes que enfrentem o racismo, promovam oportunidades e ampliem a representatividade.

LaJune Montgomery Tabron, Fundação Kellogg, ministra Anielle Franco e Hélio Santos (Salvador,02maio)
LaJune Montgomery Tabron, Fundação Kellogg, ministra Anielle Franco e Hélio Santos (Salvador,02maio) Imagem: Thay Alves

O economista Hélio Santos, que integra o conselho internacional do SCoRE e foi anfitrião do grupo em Salvador, destacou a distância entre os discursos políticos e as transformações reais, construídas principalmente pela sociedade civil:

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"O SCoRE percebeu que há uma força efetiva nas pessoas, na sociedade. Há uma contradição grave. Quem vem de fora enxerga melhor. Quem está aqui está anestesiado. É um escândalo o que acontece aqui na Bahia e todos nós temos responsabilidade", afirmou o ativista. "A minha geração batalhou para criminalizar o racismo, mas no fim das contas criminalizamos alguns racistas. O racismo mesmo só será mitigado com políticas públicas, porque somos a maioria da população", reforçou.

Cura Racial

Tabron comentou que a Fundação Kellogg vê com interesse os avanços institucionais no Brasil, como o reconhecimento da equidade racial e das ações afirmativas como pautas de Estado.

"Estamos testemunhando uma reação negativa às políticas de diversidade e inclusão. Isso tem acontecido na África do Sul e nos Estados Unidos. A pergunta que estamos nos fazendo é: como reagir a esse retrocesso? Como manter essas políticas públicas sustentáveis?"

Uma das propostas do SCoRE é promover a 'cura racial', um conceito que se baseia em conexões humanas e empatia. "Trata-se de conectar as pessoas com a humanidade que todas compartilham, construindo vínculos baseados na verdade e na história. Só assim será possível ampliar o movimento e engajar mais pessoas", explicou Tabron.

Parceria entre a Fundação Kellogg e o Fundo Baobá garantiu investimentos de U$25 milhões em projetos de equidade racial
Parceria entre a Fundação Kellogg e o Fundo Baobá garantiu investimentos de U$25 milhões em projetos de equidade racial Imagem: Fundo Baobá

Ela destacou que muitas pessoas brancas se sentem ameaçadas pelas políticas de igualdade racial, como se estivessem perdendo espaço. "Eles acham que se nós estamos ganhando, eles estão perdendo. Mas não é uma questão de dividir um bolo limitado. Quanto mais oportunidades houver, mais elas se multiplicam. Precisamos mudar essa mentalidade".

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"Queremos que as pessoas celebrem nossas vitórias assim como celebram as próprias. O desafio está em remover essa sensação de ameaça, superar narrativas de culpa e promover conexões reais. O que vimos aqui em Salvador não é apenas resistência. É uma visão de futuro construída com afeto, memória e coragem. É isso que queremos levar para o mundo", disse.

Comitiva SCoRE no Terreiro da Casa Branca. Ao centro, a ialorixá Neuza de Xangô
Comitiva SCoRE no Terreiro da Casa Branca. Ao centro, a ialorixá Neuza de Xangô Imagem: Kellogg Foundation

Com exceção de Hélio Santos e da antropóloga da Guatemala, Alicia Velásquez Nimatuj, todos os membros do SCoRE são especialistas em políticas públicas e direitos humanos dos Estados Unidos, de diferentes ascendência, a exemplo do Caribe, México, China, Índia, Palestina, em um rica diversidade étnica.

Também estiveram no encontro em Salvador, realizado no dia 02 de maio, a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco e a Secretária de Igualdade Racial, dos Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia, Ângela Guimarães, além de intelectuais, artistas e ativistas do movimento negro.

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