André Santana

André Santana

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Paulo Vieira quer mostrar que o homem negro pode ser livre, apesar da dor

O episódio mais recente do podcast Mano a Mano, comandado por Mano Brown e Semayat Oliveira, poderia ser mais uma oportunidade para o riso fácil, provocado pelo talento e a inteligência de Paulo Vieira — um dos principais nomes do humor brasileiro atual.

No entanto, o que se ouviu foi um encontro marcado por depoimentos potentes, revelando as múltiplas camadas das subjetividades negras masculinas e os enfrentamentos com as marcas profundas deixadas pelo racismo.

Os ouvintes — especialmente os homens negros — podem se reconhecer nos fragmentos daquela conversa: nos traumas, nas ausências, nas batalhas silenciosas travadas por dentro. Entre o humor refinado de Paulo Vieira e a postura firme de Mano Brown, emergiu um diálogo corajoso sobre saúde mental, autoestima, ancestralidade, expectativas sociais e os custos da ascensão em espaços historicamente excludentes.

Difícil não se emocionar em diversas passagens da conversa. O riso, ali, não encobre a dor — antes, a escancara. E, por vezes, dá lugar às lágrimas.

Foi especialmente comovente ouvir o desabafo de Mano Brown — ícone do rap nacional, referência para gerações, figura central na valorização das periferias e da autoestima negra. No estúdio, os dois deixaram de lado os palcos, as rimas e os personagens. Expuseram feridas. Falaram de dores não cicatrizadas.

"Ninguém sai da miséria ileso", afirmou Paulo, sintetizando a memória coletiva de quem sobreviveu à escassez e à negação de direitos. A frase ecoa em milhares de homens negros, ensinados desde cedo a esconder fragilidades e funcionar em modo de resistência permanente. "Se você mostrar que é fraco, vai pro final da fila", lembra Pedro Paulo. "Homem negro é muito funcional: tá lenhado, tá caindo, mas precisa continuar andando", completa o outro Paulo.

A discussão sobre saúde mental — tema ainda negligenciado quando se trata da população negra — ganhou profundidade com a troca entre os dois. Vieira defendeu a terapia como ferramenta essencial de reconstrução subjetiva. Brown, por sua vez, revelou o desafio de confiar suas vulnerabilidades a outra pessoa. "Difícil é confiar suas fraquezas pra alguém", desabafou o rapper. Paulo respondeu: "Por isso é importante que outro negro te diga que é importante. Você não saiu ileso de onde você saiu".

Ambos relataram a dificuldade de celebrar conquistas. A cada vitória, surge o peso da responsabilidade, a vigilância constante, como se carregassem a casa nas costas — imagem utilizada por Paulo Vieira para dar conta da postura de sempre estar pronto para o próximo embate. "É tudo ou nada", disse Paulo, descrevendo o esforço presente em cada projeto, cada aparição pública.

Os dois também compartilharam a experiência comum da suspeição que ronda pessoas negras em posições de destaque. Para Paulo Vieira, essa desconfiança se estende também a mulheres, pessoas pobres e a todos que ousam ocupar espaços que, historicamente, não foram feitos para eles. "Fico só esperando que o dia vai chegar. Não há essa segurança", afirmou. "A qualquer momento, alguém vai dizer: 'Sabia, ele nunca me enganou' ou 'será que ele é assim mesmo ou é uma fraude?'".

Continua após a publicidade

O próprio artista foi alvo desse dedo em riste logo após a publicação do episódio do podcast. Paulo Vieira sofreu críticas nas redes por comentar a forma como parte do público negro no Brasil recepcionou o conceito de Wakanda, do universo Pantera Negra. Para ele, não precisamos que Hollywood nos diga como nos conectar à ancestralidade africana. Nossa relação com a África, diz, é direta — e construída a partir da dor, da ausência que só será preenchida com a cultura, a religião e a música. "Não há tamanho de África capaz de preencher esse buraco que não seja por uma reconstrução mítica", afirmou.

Talvez o problema esteja na generalização da expressão "movimento negro" usada por Paulo ao se referir a quem celebrou Wakanda. Ainda assim, sua crítica ecoa em muitos negros brasileiros que veem nesse tipo de representação uma versão superficial de uma busca profunda por pertencimento.

O episódio do Mano a Mano revelou um artista sensível, consciente de seu papel na valorização da população negra. A consciência racial que, segundo ele, o salvou de estar perdido no mundo, é a mesma que atravessa suas criações: seja nos diálogos afetuosos com personagens do Brasil profundo, seja nas piadas que subvertem o próprio sistema que o deu visibilidade, ao humor que emerge das margens. "Quero mostrar com o meu trabalho que o homem negro pode ser livre", afirmou Paulo Vieira.

Esse desejo se materializa em Pablo e Luisão, série criada por ele, que estreou nesta semana no Globoplay. Inspirada em sua própria família do Tocantins, a produção representa o maior investimento da Globo no humor nos últimos anos, gênero que perdeu espaço na grade da emissora. É símbolo de uma mudança. A tradicional imagem da "família brasileira", por décadas encarnada em personagens brancos de classe média, agora ganha uma narrativa preta, periférica e do norte do país.

Mais que comédia, a série é um marco na valorização das potências criativas negras na TV. Ao se colocar como autor e sua família como protagonista, Paulo reivindica para o homem negro o direito não apenas ao riso, mas à complexidade — e, sobretudo, à liberdade de ser múltiplo.

Mas ele sabe — como tantos de nós — que essa liberdade ainda é vigiada, condicionada, regulada. Como disse no podcast: nossa revolução foi calculada pelo sistema. Ainda assim, seguimos. Criando, existindo, ocupando. E, sempre que possível, nos reconhecendo uns nos outros.

Continua após a publicidade

Ao fim, o episódio do Mano a Mano além de emocionar, propõe um pacto de escuta, empatia e transformação. Convida o público a repensar os estereótipos sobre os homens negros e a refletir sobre os impactos profundos — muitas vezes invisíveis — do racismo nas trajetórias individuais e coletivas.

É um episódio que merece ser ouvido com atenção, afinal, compreender essas subjetividades é também entender de onde vem a força da arte produzida por talentos como Mano Brown e Paulo Vieira.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.