André Santana

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Opinião

MC Poze e o real incômodo que a arte da favela causa às elites brasileiras

A prisão do MC Poze nesta quinta-feira (29) escancarou mais uma vez o grau de espetáculo, violência e desumanização que o sistema de justiça brasileiro reserva para corpos negros, jovens e periféricos. As imagens do funkeiro sendo conduzido algemado, descalço e sem camisa diante da família e dos vizinhos, não só indignaram artistas e fãs, como também provocaram um sentimento de repetição de um cruel padrão que insiste em tratar a arte da favela como ameaça.

A crítica à operação policial não é, em hipótese alguma, defesa do cometimento de crimes. Ao contrário: é um alerta sobre os desequilíbrios gritantes na forma como o sistema penal atua, porque no Brasil nem todo pau que dá em Chico dá em Francisco, principalmente se Francisco for preto e favelado.

A acusação de apologia ao crime que pesa contra Poze escorrega perigosamente para o campo da subjetividade. Cabe ao gosto e ao julgamento pessoal do operador do direito decidir se uma música é denúncia ou incentivo ao crime.

Essa linha tênue revela uma perversidade: quando é o artista da favela quem canta sobre sua realidade, o Estado entende como afronta; quando o mesmo tema é roteirizado por alguém branco, de classe média, vira arte premiada.

MC Cabelinho, em vídeo publicado nas redes sociais, tocou exatamente nesse ponto. Relembrou os personagens que interpretou em novelas da Globo, todos traficantes ou bandidos, e se perguntou por que a ficção escrita por quem nunca viveu a favela é celebrada como arte, enquanto a vivência real, transformada em música, é enquadrada como crime.

"Quem decide o que é apologia ao crime ou não? Sou eu ou você? Nunca. Quem decide isso é um juiz, um político, branco racista que não gosta de nós", disse MC Cabelinho, cantor e ator, um dos nomes de maior sucesso no gênero Trap, com música entre as mais ouvidas no Brasil.

A fala de Cabelinho expõe uma contradição estrutural: a indústria cultural brasileira alimenta um verdadeiro fetiche pela favela -- mas desde que narrada por lentes brancas, com estética que garanta um distanciamento seguro.

"Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, talvez seja o exemplo mais emblemático de uma série de obras que expuseram a violência nas favelas e foram aplaudidas. Com ritmo intenso, edição ágil e uma trilha sonora cativante, o filme estetiza a tragédia, naturaliza o determinismo social e afasta a politização do olhar. É o que a pesquisadora Ivana Bentes (UFRJ) chamou de "cosmética da fome": a embalagem bonita da miséria que não incomoda quem assiste.

Enquanto isso, artistas como Poze, Oruam e o próprio Cabelinho, oriundos dessas mesmas favelas, enfrentam repressão por narrar em suas músicas o que viveram: exclusões, violências, erros, desejos, romances e conquistas. Suas letras falam da dor, mas também da vida, do prazer, do consumo e da resistência. E talvez seja isso que tanto incomode, porque mostrar que existe potência, alegria e sucesso na favela, apesar de tudo, afronta o imaginário racista que deseja ver os periféricos apenas como vítimas ou criminosos.

Esses artistas passaram a lotar shows, acumular milhões de visualizações nas plataformas e ocupam um espaço no mercado que tradicionalmente os rejeitou. Eles não pediram licença, chegaram com tudo e são amados por uma juventude que se vê representada neles. Isso, para as elites políticas e econômicas, é insuportável.

É também por isso que vemos movimentações absurdas como a tentativa de aprovar leis que vetem artistas acusados de "apologia ao crime" em eventos públicos.

No fundo, trata-se de censura disfarçada de moralismo penal. A criminalização da arte da favela serve para reafirmar o controle e impedir que outras narrativas -- insurgentes, autênticas, populares -- tenham centralidade no debate público.

Enquanto isso, artistas brancos de outros gêneros musicais seguem cantando, sem incômodos, sobre consumo excessivo de álcool e objetificação de corpos femininos. São ovacionados por prefeitos, contratados com verbas públicas milionárias, e jamais têm suas letras consideradas "apologia ao crime".

Afinal, como lembra Carla Akotirene, em seu brilhante livro "É Fragrante Fojado, Dôtor Vossa Excelência", o sistema de justiça brasileiro está estruturado para considerar o homem negro como "hediondo". O flagrante vira farsa, a música vira crime, e o artista vira inimigo.

A prisão de MC Poze, portanto, não é um fato isolado. É parte de uma guerra simbólica mais ampla contra a arte preta, periférica, popular. É também um espelho da seletividade penal e do incômodo profundo que a autonomia cultural da favela provoca em quem deseja mantê-la silenciada.

O Brasil ainda precisa decidir: vamos continuar criminalizando a voz dos que cantam a dor que o Estado impõe ou vamos finalmente reconhecer que a arte da favela é, antes de tudo, uma forma legítima de existir, resistir e contar a própria história?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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