Raquel de Vale Tudo inspira, mas a realidade afroempreendedora é mais dura
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O atual remake da novela "Vale Tudo", na TV Globo, reacende debates importantes sobre representatividade. Um deles é o da personagem Raquel, interpretada por Taís Araújo, uma mulher negra. Após chegar ao Rio de Janeiro sem recursos, ela empreende vendendo sanduíches na praia e logo abre um restaurante com um sócio contando com um empréstimo bancário.
Para Nina Silva, CEO do Movimento Black Money, a trajetória de Raquel, embora ficcional, traz elementos autênticos da vivência de mulheres negras que empreendem. "Principalmente quando a gente fala em relação à resiliência, persistência, criatividade, a própria construção de negócios a partir da dor, da escassez", afirma. No entanto, ela faz um alerta: a novela romantiza e simplifica os obstáculos enfrentados por afroempreendedoras na vida real.
"O fato de ela [Raquel] iniciar sua jornada empreendedora vendendo o sanduíche na praia simboliza o percurso de muitas mulheres negras que empreendem por necessidade, transformando os seus saberes ancestrais, cotidianos, tradicionais, como a culinária, vestuário, estética, cabelos etc, em uma oportunidade de renda e o desejo de ascensão social. Só que, diferente da realidade da personagem, no caminho de abrir esse negócio e crescer, a afroempreendedora enfrenta muito mais obstáculos, especialmente no âmbito do financiamento", pontua Nina Silva.
"O acesso ao crédito bancário é o grande gargalo, principalmente para começar. Mesmo com o negócio funcionando, conseguir um financiamento mais robusto para crescer é quase impossível. Isso está permeado por exclusões financeiras, burocracias e discriminações estruturais", afirma Nina.
De acordo com ela, os negócios tocados por mulheres negras muitas vezes surgem por necessidade, em contextos de informalidade, e operam com recursos limitados, o que dificulta a sustentabilidade e a expansão.
Essas dificuldades são amplificadas pela localização geográfica da maioria dos empreendimentos. "Muitos estão atuando em territórios periféricos e economicamente vulneráveis, com infraestrutura precária e, alguns espaços sofrem até mesmo com acesso à internet. A gente não pode esquecer que ainda tem 33% da população brasileira que sofre de pobreza digital, e isso está muito atrelado à região em que essas pessoas residem e trabalham", pontua Nina. Segundo ela, o CEP do empreendedor ainda pesa como fator discriminatório nos critérios de concessão de crédito.
Esse cenário é confirmado pela pesquisa realizada em 2022 pela Inventivos, Movimento Black Money e RD Station. O estudo mostra o crescimento do afroempreendedorismo, com protagonismo feminino, mas revela também que 48,6% dos entrevistados ainda não conseguiram faturar com seus negócios. "Nossos negócios nascem da subsistência, e não conseguem chegar ao nível de escala ou mesmo de sustentabilidade por falta de acesso a tecnologias e recursos", observa Nina.
Executiva em tecnologia com mais de 20 anos de experiência, Nina Silva é também colunista da MIT Sloan Review Brasil e da Exame, conselheira da Fiesp e foi reconhecida como uma das 100 afrodescendentes mais influentes do mundo pela MIPAD. Em 2021, foi considerada a Mulher Mais Disruptiva do Mundo pelo Women in Tech Global Awards.
Nina defende a urgência de políticas públicas mais estruturantes. "Precisamos de fomento direto, com investimentos intencionais na população preta, em determinadas regiões e em grupos vulneráveis com suas interseccionalidades, como mulheres negras. Acelerações que não olham para essas especificidades não são eficazes. É necessário fortalecer um ecossistema de negócios mais inclusivo e conectado", reforça.
Movimento Black Money promove Inovahack, em São Paulo
Como forma de fortalecer esse ecossistema de inovação negra, o Movimento Black Money promove, de 19 a 21 de junho, em São Paulo, a 4ª edição do MBM Inovahack, com o tema "Periferias em Foco: Inovação para Transformação". A maratona de tecnologia e impacto social terá mais de 54 horas de criação coletiva, mentorias, oficinas e premiações que somam mais de R$ 20 mil.
Voltado especialmente para pessoas negras, periféricas e grupos subrepresentados no setor, o Inovahack já mobilizou mais de 2.700 participantes em edições anteriores. Nesta edição, os melhores projetos receberão capital semente, bolsas de idioma e acesso a programas de incubação.
"O evento contará com mentores, especialistas de mercado e empresas interessadas em talentos e projetos. É uma rede de poder que também pode ser financiadora do crescimento desses negócios", explica Nina. Segundo ela, o Inova Hacker e outras ações do Movimento Black Money são exemplos concretos de soluções que articulam educação, inovação, desenvolvimento econômico e inclusão produtiva com foco na população negra.
"A inovação deixa de ser promessa distante e se torna ferramenta concreta de emancipação e desenvolvimento econômico para o afroempreendedorismo no Brasil e no mundo".
Afroempreendedorismo cresce no Brasil, mas enfrenta barreiras
A pesquisa ouviu 701 empreendedores negros e negras, com o objetivo de entender as formas de atuação, as motivações e os principais obstáculos enfrentados. Os dados confirmam que o afroempreendedorismo tem crescido no país, movimentando cerca de R$ 1,6 trilhão por ano, mas ainda carece de apoio e visibilidade.
Segundo o levantamento, 61,5% dos entrevistados se identificam como mulheres cisgênero e 68,2% têm entre 25 e 44 anos. Os dados reforçam tendências já observadas em outras pesquisas, como as realizadas pelo Sebrae e Pretahub, que apontam o protagonismo das mulheres negras na criação e sustentação de negócios.
"Muitas dessas mulheres, além de liderarem seus empreendimentos, são também responsáveis financeiras por suas famílias, o que torna o ato de empreender uma questão de sobrevivência e autonomia", explica a publicitária e consultora Luciane Reis, CEO do Mercafro, uma plataforma de mídia digital focada na difusão do conhecimento econômico negro.
O objetivo do Mercafro é a produção de conteúdos informativos para atender aos pequenos negócios locais, de base étnica ou em comunidades periféricas. Ainda de acordo com a pesquisa, embora 61,9% dos afroempreendedores tenham ensino superior completo ou mais, apenas 15,8% têm renda familiar acima de seis salários mínimos.
"A disparidade entre formação e rendimento mostra que o racismo segue limitando o acesso da população negra a oportunidades de ascensão econômica, mesmo quando há qualificação", completa Luciane Reis, que realizou uma investigação sobre o conhecimento produzido por intelectuais negros nas áreas de gestão e economia no mestrado em Administração da Universidade Federal da Bahia.
Para Nina Silva, CEO e fundadora do Movimento Black Money, o afroempreendedorismo é mais do que uma resposta à exclusão: "Queremos mostrar que os maiores desafios sociais do país também podem ser os maiores berços de inovação. As periferias não só têm potencial como já são protagonistas de soluções que transformam realidades", explica.
Saberes ancestrais e soluções digitais
Para Nina, é essencial construir "pontes entre saberes ancestrais e soluções digitais", promovendo uma visão de tecnologia que respeite as realidades e a potência criativa das periferias.
"A IA [Inteligência Artificial] sozinha não é solução, somos nós, nossas comunidades, nossos objetivos de justiça e oportunidade que importam. É sobre quem está no volante, que direção estamos tomando, e como usamos as ferramentas para o bem comum".

Para Nina Silva, o início da história de Raquel pode até espelhar o começo da jornada de muitas brasileiras negras. Mas será possível enfrentar as barreiras estruturais com ações concretas, políticas públicas eficazes e o fortalecimento de redes de apoio e financiamento voltadas à população preta.
"Do lado de cá, na vida real, a gente vem construindo ferramentas para que essas mulheres negras empreendedoras possam sim ter visibilidade. Mas a partir do lugar tático, com planejamento, apoio intencional da comunidade e acesso a capital e a crédito para fomento empresarial".
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