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Confinado, Frei Betto lança seu 68º livro: "O Diabo na Corte"

Capa do novo livro de Frei Betto - Reprodução
Capa do novo livro de Frei Betto Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

26/03/2020 13h20

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Poucos lembram que o nome de batismo dele é Carlos Alberto Libânio Christo.

Frade dominicano, jornalista, animador de grupos de oração e de pastorais operárias, ele virou Frei Betto na vida, um pródigo escritor que não para de lançar novos livros todo ano.

Quarenta e nove anos e 67 livros depois de "Cartas na Prisão", o primeiro da série, ele acaba de publicar "O Diabo na Corte - Leitura Crítica do Brasil Atual", pela Cortez Editora (216 páginas, R$ 39,00).

Entre um livro e outro, Betto percorreu vários gêneros literários. Escreveu de livros de culinária a infanto-juvenis, vários romances, transitando entre a ficção e a não-ficção, e acabou se especializando numa categoria própria dele: a literatura testemunhal. É um repórter da alma.

Em tudo o que escreve, esse mineiro militante une a vida espiritual à vida real, a experiências vividas, como ao ir morar numa favela de Vitória, no Espírito Santo, depois de sair da prisão na ditadura militar, e de viver viajando pelo mundo fazendo palestras e retiros espirituais, o que lhe valeu o apelido de "Frade Voador".

Está, ou melhor, estava sempre em trânsito, chegando ou partindo de viagem.

Agora, voltou a ficar confinado por conta da pandemia de coronavírus.

Como nós dois somos septuagenários, nem ele nem eu podemos sair de casa, e eu não sei fazer matéria por telefone, porque estou ficando surdo, pedi ao amigo longevo que me desse um depoimento sobre estas duas experiências que separam o primeiro e o novo livro, quase meio século depois.

Nada como o próprio autor falar sobre a sua nova obra, que só pode ser comprada pela internet porque as livrarias estão fechadas: www.cortezeditora.com.br

Quem será o diabo na corte de que ele fala?

***

MEU NOVO LIVRO - O DIABO NA CORTE

Frei Betto

Meu primeiro livro, Cartas da Prisão (Companhia das Letras), foi editado quando eu me encontrava preso pela ditadura militar, em 1971. Meu encarceramento foi em novembro de 1969. E desde que tive acesso a papel e caneta, passei a escrever cartas a parentes e amigos, o que, mais tarde, viria a saber, por meu amigo e psicanalista Hélio Pellegrino, que essa ocupação é excelente exercício terapêutico.

Meu intuito era manter os destinatários informados de minha situação e, de certo modo, tranquilizá-los, comprovando que continuava vivo e lúcido, e denunciar as péssimas condições carcerárias.

Essas cartas do período inicial de prisão foram recolhidas aqui fora por minha amiga Maria Valéria Rezende, hoje romancista consagrada, e remetidas à Itália. Lá, a comunidade religiosa liderada por Linda Bimbi - que havia sido expulsa do Brasil por abrigar, em sua escola na periferia de Belo Horizonte, um congresso clandestino da UNE -, traduziu-as para o italiano e conseguiu que fossem publicadas por uma das mais prestigiosas editoras italianas, a Mondadori, com o título de Nos Subterrâneos da História.

A obra logo se tornou um best-seller, por ser a primeira vez que um preso político da ditadura militar brasileira, ainda mais um frade acusado de "terrorista", rompia a censura e denunciava a situação dos calabouços do Brasil. Logo, ela mereceu traduções na França, na Alemanha, na Suécia e na Espanha.

Como todo autor de primeiro livro, fiquei ansioso por "lamber a cria", como nós escritores costumamos nos referir ao primeiro exemplar que nos chega às mãos. Ocorre que a direção do Presídio Tiradentes, em São Paulo, proibiu a sua entrada.

Haja paradoxo: o que se vivia ali dentro e eu havia descrito em cartas (algumas retiradas clandestinamente do presídio) não tinha permissão de retornar como obra impressa... Ora, como a imaginação do prisioneiro é mais fértil que a do carcereiro, consegui que um exemplar do livro me chegasse às mãos por baixo dos panos...

Pois bem, agora, neste março de 2020 - 49 anos depois do lançamento de Cartas da Prisão -, lanço meu 68º livro - O DIABO NA CORTE, LEITURA CRÍTICA DO BRASIL ATUAL (Cortez) - em situação semelhante, recluso por força da quarentena imposta pelo novo coronavírus. E outra coincidência: o Brasil, de novo, praticamente governado por militares!

Não pensem que me foi fácil "lamber a cria". Como está quase tudo fechado em São Paulo, inclusive a editora (exceto para vendas online e entrega via postal), o livro demorou a me chegar. Nem tenho como enviar exemplares a parentes e amigos.

Se Cartas da Prisão revelam a face macabra da ditadura militar e a resistência dos prisioneiros, O DIABO NA CORTE analisa a reviravolta ocorrida no Brasil a partir da campanha eleitoral de 2018 e a eleição de Bolsonaro. Descrevo a emergência das forças de direita, as suspeitas de corrupção da família presidencial, a manipulação eletrônica do processo eleitoral, as fake news em profusão, a instrumentalização de igrejas evangélicas conservadoras e o perfil das figuras mais destacadas do atual ministério.

Cartas da Prisão teve que esperar cinco anos para ser publicado no Brasil, em 1976, por receio de que a censura recolhesse a edição. E, agora, O DIABO NA CORTE enfrenta essa esdrúxula, porém necessária, situação de aprisionamento doméstico voluntário de todos que, como eu, são considerados vulneráveis.

Mas confesso que me sinto de alma lavada. Ainda que demore a poder fazer lançamentos, sinto a sensação de dever cumprido ao trazer à tona o verdadeiro caráter do governo Bolsonaro, descerrar seus bastidores e as artimanhas utilizadas para obter a vitória eleitoral.

E como guardo o pessimismo para dias melhores, assinalo perspectivas de resgate da democracia brasileira.

***

Se esse confinamento ainda se prolongar muito no tempo, quem sabe ainda virão outros livros de Frei Betto este ano.

Reza a lenda que o amigo Betto já escreveu mais livros do que leu (apud Humberto Werneck).

E quando quer ler um bom livro, mas bom mesmo, esse frade dominicano escreve mais um...

Amigos maldosos contam que para poder publicar tantos livros numa vida só, Betto conta com a ajuda de velhos fradinhos aposentados, que ficam no porão do convento escrevendo sem parar em troca de pão e vinho.

Vida que segue.