Topo

Balaio do Kotscho

"Cai um avião por dia e o presidente vai à padaria"

Colunista do UOL

10/04/2020 18h03

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Na enxurrada de análises que recebi esta semana sobre o avanço da pandemia do coronavirus no Brasil, chamou-me a atenção o texto reproduzido abaixo, uma newsletter semanal do Brasil de Fato, editada por Daniel Cassol e Enrique Stédile.

É um texto longo, mas vale a pena ler até o final, aproveitando estes dias de quarentena e feriadão da Páscoa, que nos dão tempo para pensar em nossas vidas e no futuro do país

Trata-se de um relato primoroso sobre a grande tragédia brasileira e as consequências políticas, econômicas e sociais do Covid-19.

Com mais de mil mortos e quase 20 mil contaminados, no último balanço do Ministério da Saúde divulgado nesta sexta-feira, o Brasil se prepara para atingir o pico da pandemia entre o final desse mês e o começo de maio, em meio a uma insana guerra política dentro do governo, marcada pela radicalização ideológica e o fanatismo religioso, atropelando a ciência e a medicina.

Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro passeia por Brasília como se nada estivesse acontecendo.

***

Cai um avião por dia e

o presidente vai à padaria

10 de abril de 2020

A curva de casos do coronavírus cresce na mesma proporção que a quarentena é relaxada por pessoas e autoridades. O número de óbitos diários passa de cem e o presidente vai comer um sonho na padaria. Na ante sala de uma tragédia, discutimos o apego a curas milagrosas, o auxílio emergencial e a sobrevida política de Bolsonaro. Vamos lá!

1. Coronavírus rumo ao interior. Pela primeira vez desde o começo da epidemia de coronavírus no Brasil, o país ultrapassou a marca das cem mortes decorrentes da Covid-19 em um único dia. Aconteceu na terça (7), quando foram registrados 114 óbitos. No dia seguinte, 133 mortes. Na quinta (9), 141. Bem, você entendeu. Os casos confirmados da doença já devem ultrapassar os 20 mil neste fim de semana. Isso sem falar que o número é maior, considerando que estão sendo testados apenas os casos mais graves, há muitos testes ainda à espera de confirmação e os estados ainda pecam na transparência sobre as informações relacionadas à epidemia. Os dados divulgados num dia, na verdade, refletem muitas vezes óbitos ocorridos duas semanas antes, que ainda não haviam sido contabilizados. Mantido o atual ritmo de crescimento de casos de contaminações por coronavírus no País, o Brasil pode atingir a marca de 100 mil pessoas com Covid-19 ao fim das duas próximas semanas. Além disso, importante ficar atento também aos dados relativos às internações por síndrome respiratória aguda, que nesta semana registraram alta de 277% em relação ao mesmo período do ano passado. Entre os casos confirmados de coronavírus, São Paulo ainda concentra a maioria dos óbitos e já tem 65% de seus leitos de UTI ocupados.

Mas uma das grandes preocupações do momento é a expansão para o interior brasileiro. Já são cerca de 400 municípios fora das capitais e regiões metropolitanas que já registram contaminação pela Covid-19. O risco está na falta de estrutura destes locais. De acordo com a última atualização do DataSUS, metade das cidades do interior do país que têm casos do novo coronavírus não tinha leitos de UTI pelo SUS até fevereiro deste ano. Apontada como o grande problema para o enfrentamento à epidemia, a falta de leito s de UTI para os casos graves já vai ser sentida no Amazonas, o primeiro estado a ver seu sistema de saúde colapsar. Na segunda (6), já estavam ocupadas 95% das 293 vagas em UTIs de hospitais públicos e privados no estado. Na penitenciária de Puraquequara, em Manaus, que abriga 1,3 mil detentos, haveria dezenas de homens com suspeita de coronavírus, de acordo com denúncia da Pastoral Carcerária. Já há registros de coronavírus entre indígenas de diferentes etnias nos estados do Amazonas, Pará e Roraima, o que pode ter um potencial trágico. Enquanto isso, um estudo do Ministério da Saúde aponta que faltam profissionais e os laboratórios não estão preparados para enfrentar uma epidemia desta magnitude em todo o Brasil.

2. Volta à normalidade. Apesar da escalada do número de óbitos, paradoxalmente o que se viu ao longo da semana foi um relaxamento de governos e da população, ávida por voltar à normalidade, como se isso ainda fosse possível. Um acordo de bastidores entre Bolsonaro e Mandetta levaria à redução do grau de isolamento da população em cidades e estados onde os casos do novo coronavírus não tenham consumido metade dos leitos hospitalares, uma matemática que não leva em conta a realidade dos municípios que, por exemplo, sequer possuem leitos de UTI ou mesmo hospitais. A medida foi barrada pelo STF. Enquanto isso, um texto do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, que defendia o isolamento horizontal, subitamente desapareceu da internet. Porém, em muitos lugares do país, o que se vê é uma roti na quase normal, influenciada pelo presidente, que se dá ao direito de sair para comer em um balcão de padaria. Em São Paulo, epicentro da epidemia até o momento, já é possível verificar em dados um grande aumento na circulação de pessoas em ônibus e metrô. Na quinta (9), foi registrado o primeiro congestionamento na capital após 15 dias de isolamento. Além disso, também foi registrada uma maior movimentação nas cidades do interior, o que pode gerar um efeito cascata de contaminação do coronavírus para cidades de médio porte. Em todas as capitais a reclusão diminuiu, segundo constatação da UnB, utilizando a movimentação de celulares. Justamente, a capital que apresentou, proporcionalmente, maior aumento de circulação foi Manaus, onde o sistema colapsou. Foi também a capital onde mais da metade da população não respeitou o isolamento.

3. O novo nióbio. Diante de uma crise sem precedentes, um presidente da República deveria estar liderando os trabalhos de contenção da doença e encabeçando uma política nacional de mitigação dos impactos econômicos. Porém, o presidente em questão sempre foi um deputado de baixo clero pouco afeito a complexidades. E, como dizia o Barão de Itararé, de onde menos se espera é que não sai nada. Além de incentivar a população a voltar às ruas, jogando a responsabilidade sobre as restrições aos governadores, Bolsonaro voltou a praticamente prescrever a hidroxicloroquina como panaceia, em seu quinto pronunciamento em cadeia nacional desde o começo da crise. A questão deve ser encarada de apenas uma forma: Bolsonaro precisa manter sua militância mobilizada, desviar o foco do que seria sua responsabilidade enquanto presidente e criar a teoria de que está sendo sabotado pelo "sistema". Nos casos em que hidroxicloroquina funcionar, ele terá sido o pai da ideia. Nos grupos bolsonaristas no WhatsApp, a quarentena se tornou coisa de comunista que quer acabar com a nação brasileira. A esquerda estaria torcendo pelo quanto pior melhor, segundo essa visão obtusa, que ignora que o pior está batendo à nossa porta, com ou sem torcida. Na vida real, a hidroxicloroquina é mais um remédio que ainda está em fase de testes. O principal estudo do país hoje conta com a participação de mais de mil voluntários infectados pela Covid-19 e é realizado por uma força-tarefa com 60 hospitais em todo o Brasil. Se é verdade que vem sendo utilizada no tratamento de alguns pacientes com sucesso, por outro lado a medicação também aumenta o risco de que alguns pacientes tenham batimentos cardíacos irregulares que poderiam ser fatais. Em suma, não caberia a um presidente apostar suas fichas em um remédio supostamente milagroso, muito menos prescrevê-lo em rede nacional. Além da questão ideológica, há interesses mais concretos por trás dessa prescrição. Um dos fabricantes do Reuquinol, nome comercial da hidroxicloroquina, é um fervoroso empresário bolsonarista. Até nisso Bolsonaro tenta ser um Donald Trump de baixo orçamento: o presidente norte-americano detém uma pequena participação societária em uma das maiores fabricantes do medicamento no mundo. Além da hidroxicloroquina, outros medicamentos e tratamentos vêm sendo testados. Nos EUA, hospitais têm aplicado um tratamento com o plasma sanguíneo de pacientes já recuperados, estudo que já foi autorizado para ser feito no Brasil pela USP e pelos hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês. Até um medicamento de uso veterinário foi citado em estudo científico como capaz de reduzir a carga viral do novo coronavírus em células cultivadas em laboratório. Também em laboratório, a Fiocruz tem feito estudos com o Atazanavir, já usado no tratamento de pacientes com HIV, que teria resultados melhores que a cloroquina. Por fim, vale deixar mais uma vez bem claro que o que estava surtindo efeito era o distanciamento social - e não fazê-lo agora pode nos obrigar a ter de fazer algo muito mais radical em questão de tempo. Enquanto isso, a ampliação dos testes é uma necessidade para medir o estrago já causado e para implementar qualquer estratégia eficaz de retorno às atividades.

4. Bancovid-19. Primeiro setor a ser socorrido, sem nem mesmo de pedir socorro, o sistema bancário e financeiro segue a vida alegremente como se nada estivesse ocorrendo lá fora. Como mostramos na semana passada, o auxílio do governo aos bancos libera recursos, aumenta a liquidez mas não pede nenhuma contrapartida. Em tese, os recursos deveriam servir para aumentar os empréstimos à disposição de pessoas e pequenas empresas, mas na vida real nada obriga os bancos a fazer isso. Um bom exemplo é que os bancos foram autorizados a rolar e renegociar as dívidas de seus cl ientes, pessoas físicas e jurídicas. Mas, segundo levantamento da Folha, nenhum dos grandes bancos pretende fazê-lo. Como se não bastasse, a PEC 10/2020 autoriza que o Banco Central utilize as reservas internacionais para recomprar títulos públicos de grandes bancos e especuladores no exterior em quase R$ 1 trilhão, segundo o próprio BC. Na prática, permite a transferência de prejuízo dos bancos para o Estado. O mau comportamento do sistema bancário já respingou até no setor industrial, que reclama que os bancos estão asfixiando a indústria ao não usarem os recursos públicos como crédito. Reclamação endossada pela Confederação Nacional do Comércio. Para driblar o sistema bancário, o governo deverá ; aciona r o BNDES - veja só - para investir diretamente nas empresas. A combinação da recessão que estava a caminho com a pandemia já produz vítimas em alguns setores, como o calçadista, que estima que 11 mil trabalhadores foram demitidos no setor até março.

5. Lenta e Restrita. Como no Titanic, enquanto os bancos já foram resgatados, a população mais pobre não vai chegar nem perto dos botes salva-vidas. Dos 60 milhões de brasileiros aptos a receber o auxílio de R$ 600 por três meses, mais de 27 milhões cadastraram-se ainda nas primeiras 48 horas de funcionamento do aplicativo. Mas nem de longe a via crucis para receber o auxílio está prestes a terminar. Ao contrário do que o governo havia sugerido anteriormente, de que o pagamento poderia ser realizado em outras instituições bancárias e at&ea cute; em lotéricas, por enquanto elas estão previstas apenas na Caixa Econômica Federal. Ainda há uma última tentação aos que chegarem ao final dos obstáculos: o aplicativo da Caixa induz que os recursos sejam usados para quitar dívidas anteriores, ou seja, o recurso continuaria no sistema financeiro e não cumpriria sua função emergencial. Além disso, o auxílio não irá socorrer outras 15 milhões de pessoas que estão no Cadastro Único e têm emprego formal, e mais 6,3 milhões de microempreendedores individuais (MEI). Todos fazem parte da massa de trabalhadores que ganham três salários mínimos e que podem perder entre 10% e 42%, da renda a depender do cenário de redução da jornada e dos salários. Quem ganha cinco salários mínimos pode perder até 65,3% da renda mensal, segundo estudo da Unicamp. O mesmo estudo revela que o custo fiscal para evitar esse choque seria de míse ros 0,2% do PIB. Para completar, o excepcional pode se tornar normal, as medidas de flexibilização dos direitos trabalhistas, assim como a isenção dos impostos, podem se tornar permanentes se depender do empresariado, como uma mini-reforma trabalhista que incluiria mudanças na jornada de trabalho, no pagamento de férias e de bancos de horas. Além disso, Rodrigo Maia já avisou para quem vai a conta do pacote de socorro aos Estados: nada de reajuste salarial para os servidores neste ano.

6. Não acabou? Sem as ruas e com o Congresso funcionando de forma excepcional, é difícil medir a temperatura da política. Teoricamente, o governo Bolsonaro acabou, como comprovaram a vigésima noite de panelaço e a queda de popularidade no Twitter, território tradicionalmente bolsonarista, onde 71% de todas as interações foram negativas a Bolsonaro e apenas 20,5% foram positivas. Postagens nas redes sociais desta semana que falavam em golpe branco e do Planalto, já sob batuta do general Braga Neto. Na segunda, tudo indicava que a demissão iminente de Henrique Mandetta, em mais um episódio de ciúmes de Bolsonaro, seria a queda da Bastilha, que uniria de militares à esquerda na derrubada do monarca. Na vida real, foi Mandetta quem recuou e sinalizou com o afrouxamento do isolamento, como quer o chefe, embora sua fritura siga nos planos dos intrépidos Osmar Terra e Onyx Lorenzoni. Além disso, independente dos índices elevados de popularidade Mandetta, o grupo fiel a Bolsonaro, de acordo com a sua estratégia, permanece resiliente e com a popularidade bem ancorada em mais pobres. Outra pesquisa Datafolha mostra que apenas 17% dos bolsonaristas estão arrependido s de seu voto. E um levantamento do Ideia Big Data mostra que Bolsonaro conseguiu frear o crescimento de sua reprovação. Por fim, como era previsto, o STF arquivou a denúncia-crime feita há algumas semanas, por crime contra a saúde pública. Com a base social e ministerial sob controle, Bolsonaro agora partiria para mais uma tentativa de armistício com o Congresso. Como alerta Thomas Traumann, é cedo para exercícios de futurologia e para apostas políticas, como uma candidatura presidencial de Mandetta ou o futuro de Luciano Huck e João Dória. O fato é que dias piores virão (e muito piores ainda sem isolamento) e não se sabe qual sociedade sobreviverá da combinação de pandemia, colapso da saúde e crise econômica que se avizinha. No meio deste temporal, sequer sabemos se haverá eleições neste ano - outro termômetro para a popularidade e resiliência do bolsonarismo. Há até quem trabalhe discretamente para que não haja partido de oposição disputando a eleição, como o parecer favorável do vice-procurador-geral eleitoral Renato Brill de Goés para extinção do PT, baseado na morta-viva Operação Lava Jato.

7. Desmatamento vertical. Um dos temas que alertamos na semana passada era o do avanço do desmatamento na Amazônia em plena pandemia, aproveitando a paralisação dos serviços públicos. É o próprio governo federal quem comprova que o desmatamento em março já foi o dobro do mesmo período do ano passado, alcançando um número recorde que corresponde a três vezes a cidade de São Paulo em apenas oito meses. Claro que Ricardo Salles já questionou que os números podem não ser bem assim e que seriam apenas indicativos. Em consonância, a bancada ruralista também não parou e mesmo com o Congresso funcionando com atividades reduzidas, o senador Irajá Abreu (PSD-TO) está levando a toque de caixa e sem discussão a relatoria da MP 910/2019, que regulariza a grilagem de terras públicas por pessoas físicas e jurídicas. Pela proposta do senador, o prazo para regularização será estendido, além de dispensar de taxas e de vistoria a pessoas e empresas que grilaram mais do que 1,5 mil hectares, inclusive os autuados por desmatamento ilegal.

***

Bom feriadão.

Vida que segue