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Balaio do Kotscho

Na sala de espera do hospital, o medo, a angústia, o silêncio e o vazio

Entrada da emergência do Hospital Sírio-Libanês (SP): com a chegada da segunda onda, hospital volta a ficar lotado - Divulgação
Entrada da emergência do Hospital Sírio-Libanês (SP): com a chegada da segunda onda, hospital volta a ficar lotado Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

19/12/2020 13h35

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Uma coisa é ver pela televisão e ler sobre a situação dramática que neste momento estão vivendo novamente os hospitais brasileiros, ainda mais dilacerante do que no auge da pandemia.

Outra, bem diferente, é acompanhar de perto a chegada da temida segunda onda da pandemia, pegando de arrastão todas as classes sociais e faixas etárias, assustando médicos e equipes de saúde, pacientes e parentes, mesmo os que até ontem negavam sua existência e faziam troça de quem respeitava as normas da quarentena.

Relutei muito em ir ao hospital para fazer uma tomografia que a geriatra me pediu, ao diagnosticar uma obstrução no rim direito nos exames anteriores.

Era superar o medo de me contaminar com a Covid-19 num ambiente altamente contagioso ou correr o risco de ter que fazer hemodiálise, como me explicaram as filhas.

Depois de nove meses confinado em casa, de onde só saí para ir a consultórios e laboratórios, já nem me lembrava do caminho do hospital aonde fui parar inúmeras vezes no último meio século, desde os tempos em que o hoje célebre e monumental Sírio-Libanês era apenas o modesto lugar onde meus amigos médicos trabalhavam.

A pandemia fez com que mudassem as entradas do hospital, separando os pacientes com sintomas de Covid dos demais.

Apesar do mundão de gente entrando e saindo, a primeira coisa que mais me impressionou dessa vez foi o silêncio na recepção e nos corredores.

Médicos, funcionários e pacientes só falam o essencial, em voz baixa, sem se olhar, como se todos ali partilhassem o mesmo sentimento de medo diante do inimigo invisível, que pode estar em qualquer um.

Depois de medir a temperatura, o recepcionista pede para todos trocarem a máscara por uma cor de laranja do hospital.

Alguns mais precavidos, como minha filha, usam também um protetor facial incolor, o tal do face shield que virou moda. A todo momento passa-se álcool nas mãos. Todo cuidado é pouco.

Como tudo está informatizado, basta mostrar os documentos e o pedido de exames, e ir seguindo o fluxo indicado nas paredes até o local do exame.

Na sala de espera lotada, ninguém conversa. Quase todos se escondem atrás de um celular enquanto esperam ser chamados pelo número da senha. Ninguém presta atenção no noticiário da TV, que só fala do aumento de casos e óbitos no Brasil, e do início da vacinação em várias partes do mundo.

Aqui cirurgias eletivas são adiadas, os leitos de UTI e de enfermaria vão lotando, médicos e enfermeiros passam apressados, cumprimentando-se só pelo olhar.

Cada paciente na sala de espera fica pensando se vai sobrar lugar para ele, caso seja necessária a internação, depois de feitos os exames.

Em todos, há sinais de angústia com o novo cenário e imagino o que se passa pela cabeça da equipe médica, ao ver na TV imagens de festas animadas, ruas de comércio e shoppings apinhados de gente, muitos sem máscaras, como se a pandemia estivesse mesmo "no finalzinho", enquanto eles arriscam suas vidas para salvar outras vidas.

Penso no enorme contraste entre o profissionalismo e a dedicação que se vê aqui, os cuidados com a vida, e a irresponsabilidade e o desmazelo como a saúde pública é tratada pelos que deveriam nos governar, incapazes de apresentar até agora um plano de vacinação em massa com começo, meio e fim.

É como se eu tivesse passado algumas horas na sexta-feira em outro país, talvez a Alemanha de Angela Merkel e da minha família materna, um lugar onde a cidadania e o poder público se unem para combater o inimigo comum, cada um cumprindo seu papel, com direitos e deveres.

Morei e trabalhei lá por dois anos e nunca me senti tão respeitado na vida, em todos os lugares aonde ia, a serviço ou a passeio, com escola gratuita para as filhas, assistência médica e odontológica para toda a família, e eu era apenas um correspondente estrangeiro de um jornal brasileiro.

O então primeiro-ministro Helmut Schmidt, um cavalheiro da mais fina estirpe, prestava contas à imprensa toda semana e tratava todos os jornalistas da mesma forma, com a mesma lhanura, sem perguntar de onde eram.

Enquanto esperava minha vez, fiquei pensando por que alguns hospitais são tão humanos e outros não, por que alguns países dão certo e outros não, mesmo quando são abençoados por Deus e bonitos por natureza.

Na Alemanha, eu tinha orgulho de dizer que era brasileiro, nas cabines do trem ou nos balcões das "knipes" (os botecos alemães), mesmo sendo de um país que vivia sob uma feroz ditadura militar (governo Geisel, um descendente de alemães...).

As pessoas gostavam do Brasil, talvez por não saberem o que se passava aqui, perguntavam do Pelé e da Amazônia, das praias e do Carnaval, tinham uma enorme curiosidade em conhecer nosso país.

Acho que esse tempo passou, perdemos o bonde da história. Faz tempo que não viajo para o exterior, mas pelo que a gente vê na grande mídia internacional da informação globalizada online, o Brasil de hoje em dia dá pena e medo, é motivo de deboche, virou um pária perigoso, que está destruindo a Amazônia e o seu futuro, e não consegue vacinar a sua população.

Fim de tarde, voltando para casa, o que me invade é um imenso vazio. Nem sei mais o que dizer diante de tantas barbaridades diárias neste nosso Brasil, que poderia ser um grande país, e não foi. Tenho dúvidas se um dia ainda será para os meus netos.

Hoje, só me preocupo em sobreviver.

Vida que segue.