Topo

Balaio do Kotscho

Terra em transe na Praia Grande: nem Glauber seria surreal como Bolsonaro

Colunista do UOL

30/12/2020 17h37

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Governo aguarda início da vacinação contra covid-19 para demitir Pazuello", informa minha colega Thaís Oyama, aqui no UOL.

Se depender disso, o general ainda vai ficar um bom tempo no Ministério da Saúde.

Pazuello e Bolsonaro agora esqueceram por um tempo João Doria e resolveram brigar com os grandes laboratórios produtores de vacinas e os fabricantes de seringas, colocando neles a culpa pelo fracasso do programa de imunização, que ainda não tem data para começar.

Não temos ainda vacinas nem seringas e agulhas, muito menos um cronograma definido para combater a pandemia no Brasil.

Na véspera, o general mandou um subalterno dar entrevista no lugar dele, que não tinha nada para dizer, enquanto a Argentina e mais de 50 países já estavam vacinando suas populações, e imunizaram mais de 6,5 milhões de pessoas pelo mundo.

Bem longe de Brasília e do mundo real, tranquilão, com a camisa 10 do Santos que um dia foi usada por Pelé, de bermuda e chinelos, Bolsonaro apareceu logo cedo nesta quarta-feira na Praia Grande, litoral sul paulista, para fazer uma caminhada na areia, enquanto soldados do Exército terminavam de "improvisar" uma barreira com grades de ferro, mourões e cabos de aço, para conter os curiosos que já se aglomeravam em volta.

Destacava-se na cena, sob a camiseta, uma espécie de bola, na altura da barriga do capitão.

Bolsonaro vai tocando a vida

Cercado por seguranças que filmavam tudo com o celular, o presidente começou a falar sozinho para um vídeo ao vivo postado nas redes sociais, enquanto caminhava em direção aos fiéis.

"O povo está aqui na praia. Muitos vão falar que tem aglomeração, mas como eu disse lá no começo... Nós temos que enfrentar a pandemia. Tomar conta dos mais idosos, que têm comorbidade... E toca a vida".

Nem tinha tanta aglomeração. Eram cerca de cem banhistas que ficaram sabendo da chegada do presidente pelo trabalho dos soldados. No caminho, sem citar os mais de mil óbitos por covid registrados na véspera, ele apenas lamentou a morte de um cabo da PM, que tentou salvar quatro crianças no mar e morreu afogado. Prometeu ir ao sepultamento (e foi) e prestou mais uma homenagem a todos os policiais militares do Brasil. "Realmente um herói, né?", justificou.

Pessoas de todas as idades, todos sem máscaras, a exemplo de Bolsonaro, de velhos a crianças de colo, começaram a gritar "Mito!" quando o viram chegar mais perto, acenando com os dois braços erguidos, como qualquer candidato em campanha.

Como não era tanta gente, Bolsonaro foi e voltou pelas grades duas vezes, posando para selfies, cumprimentando um a um e dando autógrafos.

Curta-metragem surrealista na Baixada

Logo apareceu alguém que lhe pediu para posar com a camisa do Corinthians e outro que queria o seu autógrafo numa camiseta com o rosto do presidente e a frase: "Acabou a palhaçada".

"Manda um beijo para minha filha", implorou uma mulher estendendo-lhe seu celular; vários pediram "tira uma foto comigo" e ele foi puxando conversa com um e com outro, dando trabalho para os seguranças, nesta praia enorme frequentada pela baixa classe média, desde os tempos em que meu pai me levava lá aos domingos. Foi ali que pela primeira vez vi o mar.

"Jair Bolsonaro estava ao vivo - seguir", informa o vídeo postado nas redes sociais que tem exatos 31 minutos e 42 segundos, e só não durou mais porque acabou a plateia. Seria um curta-metragem mas, como disse outro dia, nem Glauber Rocha conseguiria enredo tão impressionante, com sua câmera na mão e uma ideia na cabeça.

É inacreditável que, no momento mais crítico da pandemia, que já matou mais de 190 mil brasileiros e deixou mais de 7,5 milhões de contaminados pelo coronavírus, quando o país já conta com mais de 14 milhões de desempregados, o presidente da República se dê ao desfrute de dedicar seu tempo apenas a uma pequena claque de devotos (vejam o vídeo) reunidos na Praia Grande.

Até agora, Brasil só tem a Coronavac

Em que mundo esse elemento vive? Nos últimos dias, Jair Bolsonaro deu seguidas demonstrações de que não tem mais a menor condição de governar o país, em meio à maior crise sanitária, social e econômica dos últimos 100 anos.

Quem tem que ser demitido, e o mais rápido possível, não é o general-ministro, minha cara Thaís Oyama, mas o chefe dele, o capitão-presidente. Não adianta nada trocar o ministro.

Se depender desse presidente antivacina, que nos levou ao abismo civilizatório, 212 milhões de vidas estão em risco no Brasil — a minha e a de vocês, caros leitores e leitoras.

Só espero que o capitão não mande tropas federais para confiscar as 10,8 milhões de doses da Coronavac que já estão estocadas no Instituto Butantan, em São Paulo — as únicas que o Brasil tem até agora — para iniciar a imunização no dia 25 de janeiro, apenas esperando a aprovação do contra-almirante presidente da Anvisa.

Vida que segue.