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Balaio do Kotscho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Folha, 100, um jornal onde o dono tinha alma de repórter

Octavio Frias de Oliveira, empresário e publisher do jornal Folha de S.Paulo - 12.02.2001 - Jorge Araújo/Folhapress
Octavio Frias de Oliveira, empresário e publisher do jornal Folha de S.Paulo Imagem: 12.02.2001 - Jorge Araújo/Folhapress

Colunista do UOL

19/02/2021 15h49

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"Kotscho, quero que você vá para São João del Rey. O quadro dele é irreversível. Fique por lá o tempo que for preciso..."

Estávamos no começo de abril de 1985 e Tancredo Neves, o primeiro presidente civil eleito depois da ditadura, agonizava no Instituto do Coração, em São Paulo, depois de fazer uma série de cirurgias.

A ordem veio de Octavio Frias de Oliveira, o seu Frias, empresário que tinha alma de repórter, embora ele sempre fizesse questão de dizer que não era jornalista nem doutor.

"Eu sou apenas empresário, vocês que são jornalistas tratem de fazer um bom jornal".

Tancredo morreria dias depois, a 21 de abril, e a Folha deu uma completa cobertura sobre seus últimos dias, acompanhados junto à família e amigos do presidente que não tomou posse, até o enterro na cidade onde nasceu.

Ainda quando Tancredo estava sendo tratado em Brasília, seu Frias conseguiu a informação de que sua doença não se tratava de diverticulite, como diziam os médicos, mas de um tumor maligno.

Fomos todos nós, repórteres, "furados" pelo dono do jornal, que deu a manchete.

Nos almoços mensais que fazia com repórteres especiais e editores, ele defendia uma tese de que, "em 20 anos, só restará um grande jornal em cada capital".

E completava, com um leve sorriso.

"Espero que seja o nosso...".

Pois o "nosso jornal" não só chega agora firme e forte ao centenário, como é líder de mercado há 35 anos, em todas as plataformas, mantendo prestígio e influência, como seu Frias sempre pregava.

"Só vamos sobreviver se fizermos do jornal um produto de primeira necessidade para sua excelência, o leitor".

Desde a nossa primeira conversa, quando entrei na Folha pela primeira vez, em fevereiro de 1980, sempre tivemos uma relação fraternal feita de muito respeito mútuo e total franqueza.

"Há tempos eu queria ter você aqui. Neste jornal, você terá toda liberdade para escrever sobre qualquer assunto, não temos lista de amigos nem de inimigos (fazendo uma referência velada ao concorrente Estadão, onde trabalhei antes, por mais de 10 anos). Só te peço para não fazer matéria sobre a Estação Rodoviária, que também é nossa, e aquilo ali está um rolo danado".

"Pode ficar tranquilo, seu Frias. Eu não ando de ônibus e nem vou passar lá perto..."

Dito e cumprido. Entre idas e vindas, já é a quarta vez que trabalho na empresa (atualmente, como colunista do UOL) e jamais sofri qualquer tipo de censura.

"Você aqui de novo?", brincou comigo Clóvis Rossi, meu velho parceiro de muitas crises, viagens e redações, grande jornalista que morreu no ano passado, e me deixou órfão.

Quantas vezes encontrei, já tarde da noite, seu Frias e Rossi debruçados sobre o editorial na máquina de escrever, antes de mandá-lo para a oficina. Os dois enxergavam mal.

"A gente tem que checar tudo e, mesmo assim, ainda sai coisa errada", justificava seu Frias, que tinha uma obsessão pela clareza e precisão dos textos do jornal, que transmitiu para seu filho Otavio.

Certa vez, ele me acordou cedo de manhã (naquela época a gente ia dormir tarde) para achar e entrevistar um colaborador do jornal, o Bresser Pereira, que seria nomeado naquele dia ministro da Fazenda pelo presidente José Sarney.

Ninguém sabia disso. Nem o futuro ministro, que foi informado pela Folha, ao sair de uma visita à mãe, internada no hospital Sírio-Libanês, e tomou um susto.

De lá, ele seguiria para participar de uma banca na USP. Pedi para acompanhá-lo no carro, com o compromisso de só publicar a entrevista depois de ele ser oficialmente nomeado. Durante a banca, Bresser Pereira foi chamado ao telefone com urgência por Sarney para lhe comunicar a boa nova, que até então só o seu Frias sabia.

O dono do jornal se interessava por tudo e estava sempre antenado em todos os assuntos, como se fosse um pauteiro.

No final de 1983, seus olhos brilharam quando lhe mostrei uma sugestão de pauta para o jornal se engajar no que viria a ser a campanha das Diretas Já, no ano seguinte.

"Pode começar amanhã. Vamos colocar todo o jornal para cobrir esse assunto. Mantenha-me informado".

Colocou sua assinatura, avalizando a pauta, e mandou enviá-la a todas as sucursais.

Cada vez que voltava das viagens para cobrir os comícios por todo o país, ele me chamava para saber, nos mínimos detalhes, o que estava acontecendo e qual a repercussão da nossa cobertura.

Quando lhe dizia que o jornal esgotava cedo nas bancas e pessoas tiravam xerox das reportagens, ele chamava o engenheiro Pedro, responsável pela circulação, para aumentar a remessa a determinadas cidades.

A história completa desta grande cobertura está contada no meu livro "Explode um Novo Brasil _ Diário da Campanha das Diretas Já" (Editora Brasiliense, 1984).

Na noite de lançamento, no saguão da Folha, lá estava seu Frias ao lado de Ulysses Guimarães, o "Senhor Diretas", que escreveu o prefácio do livro a mão.

De vez em quando, ele me chamava à sua sala, no final de tarde, para tomar um uísque e discutir o jornal e o país, e me perguntava o que achava sobre determinado assunto ou editoria.

Mais do que ninguém, seu Frias sabia que o maior patrimônio do seu jornal _ de qualquer jornal _ é a credibilidade.

O assunto poderia ser o garimpo de Serra Pelada e a jazida de ferro da Vale, ali ao lado, em Carajás, ou a atuação da Receita Federal nas fronteiras do país, o conflito de terras no Araguaia-Tocantins ou as famílias de desempregados passando fome em São Paulo _ tudo lhe interessava saber.

Numa dessas conversas, em que falávamos de tudo, dei-lhe a sugestão de fazer uma parceria com a Fotoptica, que tinha vários quiosques espalhados pela cidade, para receber anúncios classificados do jornal, que só mantinha um balcão na Barão de Limeira, enquanto o concorrente tinha várias lojas.

Naquela época, os classificados eram não só a grande fonte de faturamento do Estadão, mas também aumentavam a circulação do jornal aos domingos.

Foi assim, a custo zero, apenas fazendo uma permuta com a Fotoptica, que nasceu a ideia do Folhão aos domingos.

Seu Frias estimulava a participação dos jornalistas em todo o processo de produção do jornal. Isso fazia com que a gente não fosse apenas um funcionário com crachá, mas podia se sentir também meio dono do jornal.

Acho que esse foi um dos segredos, junto com o Projeto Folha, lançado em 1985, por Otavio Frias Filho, para que a empresa ganhasse não só prestígio e influência, mas também visse seu faturamento e circulação crescer mês a mês.

O repórter-pauteiro-empresário ficava com um olho na redação e outro no caixa. Tinha pavor da empresa "entrar no vermelho".

"Só a independência financeira pode nos garantir a independência editorial", não se cansava de repetir nos almoços, em que servia uma comida muito boa e até vinho, e todos tinham direito à palavra. Às vezes, quebrava o pau, mas o jornal não parava de crescer.

Seu Frias, como qualquer bom repórter, gostava mais de ouvir do que de falar. Às vezes, se fazia de surdo, para não ouvir besteiras ou pedidos de aumento de salário, mas valorizava as boas ideias. Por isso, durante alguns meses, ele me pagava um extra na boca do caixa do Piazon, o chefe da tesouraria, até o jornal entrar no vermelho.

Depois da Copa do Mundo de 2016, quando tive alguns atritos com a redação, recebi um convite para voltar ao Jornal.do Brasil, onde já tinha trabalhado como correspondente na Europa, no final dos anos 1970. Ao me despedir do seu Frias, ele me disse: "Você teve um papel importante na história desta empresa, e poderá voltar para cá quando quiser". Ver mais no meu livro de memórias, "Do Golpe ao Planalto _ uma Vida de Repórter" (Editora Companhia das Letras, 2006).

No verão de 2001, quando o jornal completou 80 anos, eu trabalhava na revista Época e estava passando férias na praia quando recebi uma ligação de dona Vera, a eterna secretária de Frias.

"Onde você está? Recebeu nosso convite? Seu Frias quer muito que você venha à comemoração do aniversário do jornal".

Só fui entender a insistência quando já estava na fila de cumprimentos e, ao chegar minha vez, ele me puxou de lado para saber onde eu estava trabalhando.

"Pois, amanhã, vai te ligar uma pessoa em meu nome para te convidar a voltar ao jornal. Você tem que voltar pra Folha".

Voltei, e pouco mais de um ano depois, me despedi mais uma vez de seu Frias, para trabalhar na quarta campanha presidencial de Lula.

"Você não tem jeito mesmo. Vão perder de novo. Mas você tem que me prometer que, depois da eleição, volta pra Folha".

Prometi, mas antes do final do ano de 2002, voltei lá na sala do seu Frias para lhe comunicar :

"Amigo, desta vez deu zebra. Nós ganhamos, e eu vou trabalhar no governo em Brasília".

Seu Frias só balançou a cabeça, me deu um forte abraço, e repetiu o convite para depois voltar de novo.

Há três anos, seu Frias já tinha morrido, acabei voltando, a convite do Sergio Dávila, que hoje dirige a redação, após a morte precoce de Otavio Frias Filho.

Com a pandemia, como sou do grupo de alto risco, no ano passado não tinha mais condições de fazer minhas reportagens na rua, o meu habitat profissional.

Mas o velho prédio 425 da Barão de Limeira, ao lado do falecido bar do Mané, onde fica o UOL, continua sendo a minha casa.

E não pretendo mais mudar.

Longa vida para a Folha.

A democracia brasileira precisa muito desse jornal, um artigo de primeira necessidade, como queria o velho seu Frias.

Vida que segue.

: https://www.youtube.com/watch?v=1LWfEerOh2k

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