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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Perdemos Ricardo Carvalho, um repórter apaixonado e grande ser humano

Colunista do UOL

20/06/2021 17h41

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"Você está sabendo que o Ricardão morreu?", perguntou-me ao telefone o amigo comum Dacio Nitrini.

Não, eu não estava sabendo. Foi um choque, custei a acreditar. Ainda anteontem falamos sobre um debate que ele estava organizando sobre a vida e a obra de dom Paulo Evaristo Arns e a sua relação com os jornalistas na época da ditadura. Queria prestar uma homenagem ao amigo no ano do centenário de seu nascimento. Não se queixou da saúde.

Pois infelizmente era verdade: perdemos neste domingo, aos 73 anos, o jornalista, escritor e documentarista Ricardo Carvalho, o Ricardão, acima de tudo um grande ser humano, mais preocupado em ajudar os outros do que consigo mesmo.

Por isso mesmo, para não incomodar, não avisou os amigos quando, há duas semanas, foi internado no hospital da Prevent Senior com uma crise de pancreatite e teve problemas com o seu plano de saúde para fazer o tratamento.

Sentindo-se melhor, foi para casa e não se queixou mais da saúde.

Ricardão, de tanto se preocupar com os outros e o mundo, tornou-se um dos primeiros repórteres especializados em Direitos Humanos e defesa do Meio Ambiente, o que o fez ficar muito próximo do dom Paulo, sobre quem escreveu dois livros e produziu um documentário. .

Nesta mesma época, anos 70 do século passado, nos tornamos muito amigos, irmãos de boteco, de sonhos e de fé na nossa profissão.

Depois de começar como repórter da Folha, Ricardão foi para a televisão, dirigiu o jornalismo da TV Cultura, trabalhou como editor chefe do Globo Repórter e do Bom dia São Paulo e a partir daí se dedicou a trabalhar com documentários.

Em 1985, abriu sua própria editora, a Argumento, onde produziu e dirigiu programas de TV e documentários de resgate da memória nacional, como "Impressões do Brasil _ A imprensa brasileira através dos tempos", "História da indústria no Brasil" e "Memória do meio ambiente", tema também de vários vídeos.

Ricardo Carvalho é autor dos livros "O cardeal da resistência: as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns", publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, e "O cardeal e o repórter", relançado este ano pela editora Terra Redonda, ganhador do prêmio Vladimir Herzog em 2010.

Escreveu também uma biografia-reportagem sobre o pianista e maestro João Carlos Martins e estava terminando o livro sobre o jurista e ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que eu não preciso nem ler porque ele já me contou tudo.

O amigo era um apaixonado por tudo o que fazia. Nunca perdeu o entusiasmo de repórter iniciante. Cada trabalho que pegava encarava como se fosse o primeiro, o melhor e o último, mas nunca parou de fazer planos e projetos.

No ano passado, ele me arrastou para um deles, o programa de entrevistas "Ricardão & Ricardinho", apelidado pelos inimigos de "Os Dinossauros", que chegou a ir ao ar pela AllTV, do Alberto Luchetti, mas durou pouco porque não conseguimos patrocínio.

A gente se divertia trabalhando. Só assim essa profissão vale a pena.

A pior coisa que tem neste ofício é escrever sobre a morte de um amigo, coisa que nunca aprendi a fazer, e mil vezes já prometi a mim mesmo que não faria de novo.

Dois anos atrás, abri uma exceção para escrever sobre Clóvis Rossi, o grande mestre de todos nós da geração 68..

Ricardão soube da morte do meu velho parceiro de madrugada, mas esperou o dia amanhecer para me dar a notícia porque sabia que nós dois éramos também amigos-irmãos inseparáveis.

Agora eu também não poderia deixar de escrever sobre essa figura rara, que se casou muitas vezes e era amigo de todas as ex-mulheres, passou por mil colégios e moradias, um cara que dedicava tempo e atenção às amizades, e não dava a menor importância às coisas materiais.

Morreu um sonhador com um coração onde cabia todo mundo.

Quem vai me chamar agora para ir ao boteco da esquina fazer uma "reunião de pauta" ou falar mal dos nossos times?

Vai com Deus, xará, descanse em paz.

Vida que segue.