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OPINIÃO

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Judiciário quer manter supersalários, 45 anos após denúncia das mordomias

                                 Cerimônia de posse do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux: o dono das leis para magistrados                              -                                 Marcelo Camargo/Agência Brasil
Cerimônia de posse do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux: o dono das leis para magistrados Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista do UOL

01/10/2021 18h14

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"Assim vivem os nossos superfuncionários". Este foi o título principal da minha série de reportagens sobre as mordomias da elite do serviço público, publicada pelo Estadão, faz exatos 45 anos.

Os leitores mais antigos devem se lembrar: deu um rebu danado na época, com o país ainda sob a ditadura militar, que tinha acabado de tirar a censura do centenário jornal.

No dia 1º de agosto de 1976 e seguintes, o país ficou chocado ao saber dos privilégios e gastanças sem fim de uma casta muito especial de patriotas que torravam nosso dinheiro, sem nenhum controle, em cartões corporativas, jatinhos, mansões e festas sem hora para acabar. O levantamento, coordenado por Raul Martins Bastos, mobilizou toda a rede de sucursais e correspondentes do Estadão (as reportagens completas podem ser encontradas no arquivo eletrônico do jornal ou no Google).

O general Ernesto Geisel ficou furioso e chegou a convocar o dono do jornal a ir a Brasília. Mas, como era tudo verdade, prometeu tomar severas providências para acabar com aquela pouca vergonha, que até hoje não acabou, só fez aumentar.

Pois, nesta sexta-feira, o mesmo Estadão publicou reportagem de Lauriberto Pompeu com este título: "Pressão do Judiciário trava projeto que barra supersalários no funcionalismo público".

E sabem o que aconteceu? Nada, nenhuma repercussão, nem no próprio jornal, que não deu o devido destaque à notícia.

A cultura das mordomias e dos privilégios entranhou-se de tal forma na cultura nacional, que ninguém mais se espanta quando é comum o pessoal da toga ganhar salários e penduricalhos que rendem mais de R$ 100 mil por mês, 2,5 vezes o teto do serviço público, equivalente ao salário de um ministro do Supremo.

Pompeu relata que, depois de levar mais de quatro anos para ser aprovado na Câmara, o projeto de lei que impõe barreiras aos supersalários no funcionalismo público agora empacou no Senado. Encaminhado há quase dois meses à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sequer há relator definido, primeira providência para fazer o projeto andar.

Senadores ouvidos pelo jornal contam que o motivo da demora é a pressão exercida por excelências do Poder Judiciário para barrar a proposta, a começar pelo presidente do STF, Luiz Fux.

"Mudanças na Lei Orgânica da Magistratura devem partir do Poder Judiciário", explicou candidamente o ministro.

Claro, só os homens da lei podem mudar as suas próprias leis. Como nos últimos quatro anos eles não apresentaram nenhum projeto para "mudanças", vai ficar tudo por isso mesmo, e não se fala mais no assunto.

É por isso que as maiores extravagâncias salariais de magistrados e militares (desses, o presidente Bolsonaro já cuidou e simplesmente acabou com o teto salarial) são sempre justificadas porque tudo é feito de "acordo com a lei e a Constituição", desde a vinda da família de D. João 6º ao Brasil.

Não importa se o regime é militar ou civil, monárquico ou paramilitar, se o país enfrenta ou não uma brutal crise econômica, com pessoas disputando ossos e pelancas descartadas pelos açougues, moradores de rua formam imensas filas por um prato de comida, se o dólar subiu ou a Bolsa caiu. O deles está sempre garantido.

Para se ter uma ideia, são mais de 500 os tipos de benefícios concedidos a servidores _ entre eles, auxílio-livro, auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-paletó, auxílio-mudança, auxílio-banda-larga, auxílio-creche, e mais o diabo a quatro. Salário é só um detalhe.

Davi Alcolumbre, o presidente da CCJ, já recebeu recados de magistrados das Cortes Superiores para "sentar em cima do projeto", como está fazendo com a sabatina de André Mendonça, indicado por Bolsonaro para o STF. As Cortes Inferiores ainda não se manifestaram.

"Há um equívoco entre o que é verba indenizatória e remuneratória", justifica Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, que tem "receio de retrocessos". Para ela, deve ser normal um magistrado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso receber ao final do mês R$ 274 mil em indenizações e penduricalhos, como aconteceu no começo do ano. Tudo dentro da lei, é claro.

Nós todos também temos "receio de retrocessos", mas de outra ordem.

O que ninguém explicou até hoje é por que a casta da toga tem direito a 60 dias de férias por ano, recebe o adicional nos dois períodos de 30 dias, e ainda pode "vender" uma parte ao tribunal para receber em dinheiro.

Dependendo do andar social em que a criatura circula, a vida no Brasil pode ser uma eterna festa com o nosso pobre dinheiro.

Perto da farra que temos hoje, aquelas mordomias do tempo dos generais eram até modestas, mas causaram um escândalo federal.

Normalizamos tudo, até a morte por falta de oxigênio e vacinas.

Dou meus parabéns ao repórter Lauriberto Pompeo por ainda insistir nesse assunto desagradável num país anestesiado, que aceita tudo, mansamente.

Vida que segue.

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