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OPINIÃO

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José Serra, 80, foi o único com coragem para peitar o pacotão de Bolsonaro

Senador José Serra: uma voz solitária contra o pacotão eleitoral  - Edilson Rodrigues/Agência Senado
Senador José Serra: uma voz solitária contra o pacotão eleitoral Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Colunista do UOL

01/07/2022 13h25

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Os historiadores do futuro deverão lembrar que na noite da vergonha de 30 de junho de 2022, em que o Senado Federal aprovou quase por unanimidade a bomba fiscal do "pacotão do desespero" do presidente Jair Bolsonaro, unindo governo e oposição, uma única voz se levantou contra o estelionato eleitoral praticado a três meses da abertura das urnas, decretando para isso até estado de emergência nacional.

O quase fica por conta do senador paulistano José Serra, 80 anos, que andava sumido da cena política, por conta de sérios problemas de saúde.

Na véspera, ele havia perguntado pelo Twitter: "Há apenas poucas semanas, o Senado descobriu que pobres passam fome e que esperam na fila dos benefícios?"

Não teve resposta, porque ninguém ali, no governo e no parlamento, estava preocupado com a fome de 33 milhões de brasileiros, mas com os votos dos pobres que vão mais uma vez decidir a eleição _ não pelo seu poder político, que é nenhum na fila do pão, mas por serem muitos, cada vez mais miseráveis, um terço da população sobrevivendo com até R$ 439 por mês, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas.

Quem vai ser louco a essa altura do campeonato de votar contra medidas que irão beneficiar imediatamente milhões de eleitores?, perguntavam-se pelos corredores os senadores da oposição votando em peso no pacotão do governo que implodiu o sagrado teto de gastos de Paulo Guedes.

O único louco que apareceu foi ele, José Serra, que deu a resposta aos colegas ao justificar seu voto solitário contra essa bandalheira inconstitucional:

"O pretexto foi defender quem mais precisa, mas isso deveria ser feito de outra forma. O governo enviaria projeto de lei e créditos extraordinários, sinalizando controle e governança".

Mas isso seria mais complicado, levaria mais tempo, e o governo tem pressa para ressuscitar a moribunda campanha pela reeleição do presidente, ameaçado de ser derrotado pelo ex-presidente Lula já no primeiro turno em outubro.

Serra falou para as paredes: "Além disso, a perda de credibilidade fiscal vai estimular a inflação, juros mais elevados e reduzir os investimentos para a geração de emprego e renda, que é a mais importante política de combate à pobreza de que dispomos".

Ou seja, Bolsonaro vai jogar dinheiro para o alto agora, como Silvio Santos faz em seu programa, para logo ali adiante a inflação e os juros comerem os benefícios, que só valem até o final do ano, e deixarão uma bomba-relógio acionada para o próximo governo, comprometendo o futuro das finanças públicas e da economia do país.

Aprovado a toque de caixa em dois turnos no Senado, sem choro nem vela, o pacotão chamado sugestivamente pela equipe econômica de "kamikaze", segue agora para a Câmara dos Deputados, dominada pelos tratoraços do Centrão de Arthur Lira & Cia., apenas para ser sacramentada.

Nesse vale tudo, do tudo ou nada, Bolsonaro joga suas últimas fichas para dar um cavalo de pau nas pesquisas e tentar ainda ganhar no voto, enquanto prepara seu Plano B (ou já seria o A?) para melar o resultado da eleição, alegando fraude nas urnas eletrônicas, como vem fazendo, sem nenhuma prova.

O general Braga Netto, seu provável vice, já avisou a um seleto grupo de empresários, reunido na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), na sexta-feira passada, que sem a auditoria das Forças Armadas não haverá eleição, como relata a colunista Malu Gaspar no Globo de hoje.

Dá para imaginar militares fardados e armados fiscalizando as urnas para amedrontar os eleitores? Nem na Venezuela, tão temida pelos "cidadãos de bem", se viu algo parecido e lá também o governo cooptou os militares.

Depois das últimas pesquisas desfavoráveis, o capitão e seu general já nem disfarçam mais, e ganharam ainda mais força, diante da rendição incondicional dos partidos de oposição nas votações no Senado para aprovar o indecente pacotão.

Restou apenas o sistemático e teimoso José Serra, homem de poucos amigos e muitas certezas, já se encaminhando para a aposentadoria, para dizer um solene NÃO! a mais um golpe branco nas instituições, perpetrado "dentro das quatro linhas", é claro.

Prefeito e governador de São Paulo, deputado e senador, ministro de dois governos e duas vezes derrotado em eleições presidenciais, o cacique tucano já foi quase tudo na vida pública.

Sem nunca ter sido seu amigo nem votado nele, mas sempre o respeitando, vejo-me obrigado a lhe render minhas homenagens pela atitude corajosa de peitar o capitão, nesta hora dramática da vida brasileira, em que tantos se calam, omitem ou aderem alegremente.

Valeu, Serra!

Vida que segue.