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OPINIÃO

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Mil instrumentos: como Jô Soares mexeu com todas as áreas da vida do país

Personalidades sonhavam em sentar no sofá de Jô Soares: em seis décadas de carreira, ele só não fez chover - Ramon Vasconcelos/Rede Globo
Personalidades sonhavam em sentar no sofá de Jô Soares: em seis décadas de carreira, ele só não fez chover Imagem: Ramon Vasconcelos/Rede Globo

Colunista do UOL

05/08/2022 11h45

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Na nossa agitada reunião de pauta hoje de manhã no UOL, quase só se falou da morte de Jô Soares e de como ele passeou, com sua inteligência, cultura e bom humor, por quase todas as áreas da vida brasileira nas últimas seis décadas.

Da política ao futebol, do fino humor à crítica de costumes, do teatro à música, da literatura ao cinema, das ciências às artes, nada escapou do interesse deste homem dos mil instrumentos. Seus célebres bordões são repetidos até hoje: "Me desliga o tubo", "Vai pra casa, Padilha", "Bota ponta, Telê", entre centenas de outros dos seus inesquecíveis personagens. Jô Soares não era um, era muitos...

Sem ser músico, valia por uma orquestra inteira; sozinho no palco, preenchia todos os espaços, e não era só pela sua robustez.

Jô tinha o dom de rir dele mesmo, e assim deu-se ao direito de zoar dos outros que iam ao seu programa, não perdoava ninguém. Nem eu, como aconteceu certa vez numa gravação em que ele estava particularmente inspirado, quando fui falar do meu livro de memórias "Do Golpe ao Planalto".

Não conseguia enxergar direito quem aparecia nas fotografias antigas projetadas num telão, confundia Jesus com Genésio (quem se interessar pode conferir no arquivo do Globoplay). A plateia e ele morriam de rir, e eu fiquei meio sem graça...

Com a sua morte, o Brasil emburreceu mais um pouco. Apagou-se uma luz poderosa que iluminava os porões dos poderosos de todas as épocas e latitudes.

Já doente, longe dos holofotes que o acompanharam a vida toda, trabalhou até o fim. Ultimamente, dedicava-se com afinco à montagem do que seria sua última obra, a peça "À meia luz", com estreia prevista para setembro.

Nada escapava ao seu olhar. Numa outra vez, durante um jantar, divertia-se com o revisteiro Thomaz Souto Correa ao me ver fazendo o prato com tudo a que tinha direito. "Acho melhor você fazer um prato de cada vez... Assim você torturou a salada que estava tão bonita..."

Jô fazia de um tudo, e fazia tudo bem feito. Era um perfeccionista, sem ser chato; um homem muito culto, sem ser pedante. Tratava todo mundo da mesma forma, chamando de você, do presidente da República ao coletor de lixo.

Em 2004, na reestreia do seu programa, depois do período de férias, queria entrevistar o presidente Lula no Palácio da Alvorada. Combinou tudo comigo, que era secretário de Imprensa, acertei com o presidente, e marcamos a data na agenda oficial.

Sem eu saber, Lula combinou também uma entrevista para o programa do Ratinho, que acabou indo ao ar antes do Jô, e ele não teve dúvidas. Injuriado com a desfeita, cancelou a entrevista. Ficou muito bravo comigo, mas não tive culpa nenhuma nessa história, como ele descobriria depois. Após esse quiproquó, Lula não iria mais ao seu programa. E Jô nunca mais me deu uma entrevista.

Podia ser muito engraçado, mas não brincava em serviço. Fidelíssimo aos seus muitos colaboradores, que o acompanharam ao longo da carreira, como Diléa Frate, Anne Porlan e Max Nunes, esse raro artista multimídia deixou seu talento registrado em programas de TV, shows, livros, peças de teatro, roteiros de cinema, artigos de jornais e revistas, como vocês poderão ler e lembrar nas muitas matérias dos meus colegas aqui no UOL.

Para mim, fica a lembrança de um amigo gentil, bom de papo, um cidadão brasileiro que nos dava orgulho. Não se fazem mais Jô Soares como antigamente...

Vida que segue.