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Balaio do Kotscho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta a meu pai, que amava o Brasil e nunca perdia as esperanças

Getúlio Vargas quando da perfuração do primeiro poço de petróleo no Brasil: no pós guerra, o Brasil era o país do futuro.                              -                                 DIVULGAçãO PETROBRAS
Getúlio Vargas quando da perfuração do primeiro poço de petróleo no Brasil: no pós guerra, o Brasil era o país do futuro. Imagem: DIVULGAçãO PETROBRAS

Colunista do UOL

13/08/2022 16h03

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Pai,

Lembro-me de você chegando em casa naquele fatídico dia 24 de agosto de 1954 em que Getúlio Vargas se matou com um tiro no peito. Entrou apressado e colocou sobre a mesa de jantar um quadro a óleo com a figura de um homem preto com semblante triste.

"Was ist das?", perguntou minha mãe alemã, que não falava português, e não estava entendendo nada sobre o que havia acontecido. Meu pai romeno, da região da antiga Bessarábia, onde nasceu Samuel Wainer, já falava nossa língua como se tivesse nascido aqui, entendia a gravidade do momento e temia pelo que poderia acontecer nos dias seguintes. Temia uma guerra civil.

"Não sei o que pode acontecer. Só deu tempo para comprar esse quadro", explicou-lhe, deixando a mãe ainda mais confusa.

Diante da incerteza, você achou que aquela obra de arte poderia, em caso de necessidade, ser vendida para comprar comida. Obras de arte costumam preservar o valor em tempos de crise.

***

Nestes últimos dias, não sei bem por que, tenho pensado muito no meu pai, um refugiado da Segunda Guerra Mundial que amava o Brasil, país que adotou e pelo qual era apaixonado. Para ele, não havia país melhor no mundo.

Deve ser por causa do Dia dos Pais, celebrado neste domingo, mas não só por isso, pois já tinha me habituado a viver sem ele, desde 1960, quando morreu de câncer, aos 38 anos, muito contra a vontade, porque adorava viver.

A vida para ele era uma festa permanente. Levava sempre os amigos para casa depois do trabalho, botava um disco na vitrola, abria um vinho e ficava conversando até tarde da noite, dando muitas gargalhadas.

Depois do que passara naqueles anos de guerra na Europa, o Brasil era o paraíso sobre a terra. A cada dia, chegava em casa com uma nova descoberta, um novo amigo, novos planos.

De repente, um tiro, a morte de Getúlio, o pau quebrando no Rio de Janeiro, a ameaça de um golpe militar, e mudava tudo.

Pouco tempo antes, o próprio Getúlio tinha assinado o seu processo de naturalização, agora um cidadão brasileiro de verdade, como ele contava com orgulho ao mostrar seus novos documentos (no ano seguinte, o novo presidente, Café Filho, assinaria a naturalização da dona Beth, minha mãe). .

Engenheiro de obras, o seu Nick, como todos chamavam meu pai, vivia viajando pelo país. Participou da construção de usinas de açúcar e hidrelétricas, do oleoduto de Cubatão e de um monte de fábricas, e só não esteve na inauguração de Brasília porque morreu naquele ano.

Era um grande aventureiro, o oposto de minha mãe, que gostava de ficar em casa fazendo comida para a família (com o tempo, outros parentes foram chegando da Europa no pós-guerra).

Acho que o pai gostaria de saber que o filho mais velho, o primeiro da família a nascer no Brasil, virou jornalista e também passaria a vida viajando, descobrindo as belezas e agruras do nosso país, que sempre nos surpreende (assim como aconteceu com meu único irmão, Ronaldo, fotógrafo e repórter de esportes).

Se me encontrasse com ele amanhã, não saberia nem por onde começar a lhe contar as histórias sobre o que aconteceu com a gente nestes 68 anos depois que ele nos deixou, tão cedo.

Nunca senti tanta falta dele como agora, que também não sabemos o que vai acontecer com o país nos próximos dias, meses e anos, para partilhar minhas angústias diante do desconhecido, desta encruzilhada em que nos encontramos, com o Brasil virado de pernas para o ar, assobiando e plantando bananeira para espanto do mundo, que tanto nos admirava, até outro dia ainda. O que fizemos de nós? Que mal fizemos para merecer tanta urucubaca?

Não saberia lhe explicar como chegamos a esse ponto em que, como em 1954, após o suicídio de Getúlio, as pessoas se perguntam a toda hora se vai ter golpe ou se a nossa jovem democracia sobreviverá a tanta afronta. Seu Nick não reconheceria mais esse Brasil que ele tanto amou e lhe deu os anos mais felizes da sua vida. Ainda bem que pode levar boas lembranças.

Nestas voltas que a vida dá, parece que giramos em círculo, voltando sempre ao mesmo ponto de partida.

Me faz falta, principalmente, o otimismo dele, sempre achando que no fim tudo vai dar certo. Nunca perdia as esperanças, mesmo quando a sua doença se agravava, impedindo-o de viajar para ver suas obras. Vivia cada dia como se fosse o último, como se pressentisse o fim próximo, e quase não falava dos tempos da guerra. Não gastava tempo com medos e tristezas. Bons tempos, aqueles.

Feliz dia, pai.

Vida que segue.

***

Reproduzo abaixo a sofrida mensagem sobre o texto acima e o momento que estamos vivendo que recebi da leitora Iara Weissberg, geóloga formada na USP, filha de judeu ucraniano e mãe pernambucana. O pai foi preso no tempo de Getúlio Vargas.

A vida nos ensina

"Chorei como nunca chorei. As lágrimas ardiam os olhos e não queriam sair. É amargura, é saudade, é um sentimento meio absurdo e tem que doer, porque nada está bem, nem claro, nem certo.

Vi uma multidão, numa marcha dos infernos, gritando palavras sem sentido, mas fazendo parte de um coro de alucinados. Antes, alguns dias atrás, assisti, numa praça cheia, pessoas num uníssono gritando que o país deve respeitar as leis e o povo livre, que as criou a duras penas.

Sei que a vida nos ensina, também, que o certo e o errado vivem se afrontando, um querendo se sobrepor ao outro. Uma certeza aparece em meio a tudo isso. As mentes que evoluíram, e são muitas, pensam no bem de uma grande maioria, e aí lembro de meu pai.

Velho socialista, lutou por um mundo onde a grande maioria pudesse ter condições dignas de viver, trabalhar, estudar, morar, comer, cantar, amar e amar. Ter um objetivo de construir, melhorar e respeitar o próximo e a natureza. Tudo caberia num planeta de trocas, onde nem o dinheiro teria importância, e sim produzir para todos, sem distinção de qualquer ordem.

Este velho socialista fincou fundo essas ideias em minhas ideias, e assim vivi, hoje com saudades, para escrever e sentir o quanto ele foi importante.

Tenho muitos amigos que pensam parecido e, por esta razão, está valendo a pena toda essa argumentação, esse sonho e alguma certeza de que essas multidões terão outra oportunidade de ser felizes.

Iara Weissberg