Balaio do Kotscho

Balaio do Kotscho

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Futuro da imprensa: IA só não vai acabar com os repórteres

Dias atrás, fui convidado pela Cásper Libero, uma das faculdades de jornalismo mais antigas do país, a dar a aula magna deste ano sobre o futuro da nossa profissão.

Ao lado do colega e velho amigo Valmir Salaro, do professor Camilo Vannuchi e da minha neta Laura, que estuda lá, foram mais de duas horas de animado debate num auditório lotado de jovens preocupados em saber se o jornalismo sobreviverá à inteligência artificial que começa a invadir as redações.

Naqueles dias, a 18 de março, tivemos a notícia de que o Il Foglio, um jornal conservador da Itália, tinha lançado sua primeira edição totalmente produzida por IA, algo tratado como revolucionário.

Claudio Cerasa, o editor-chefe do jornal, explicou que todos os textos foram produzidos a partir de perguntas de jornalistas aos robôs de uma plataforma de inteligência artificial. Neles não havia fatos inéditos nem entrevistas, a essência do jornalismo, que é contar novidades, surpreender o público, informar com credibilidade.

Isso me deixou mais tranquilo e fez-me lembrar de uma célebre frase do mestre Audálio Dantas quando lhe perguntaram certa vez o que é um repórter?

"Repórter, meu filho, é um ser que pergunta."

Para escrever, é preciso primeiro saber ouvir para descobrir o que os outros ainda não sabem sobre determinado assunto.

Que me desculpem os colegas jornalistas dedicados a outras tarefas nas redações, mas a experiência do Il Foglio, que acaba de completar um mês, mostrou um dado preocupante para eles: tudo já pode ser feito por IA, da escrita dos textos à edição, passando pela diagramação, legendas, títulos e manchetes.

Só uma função na imprensa está com a sobrevivência garantida: a do repórter humano, aquele ser capaz de fazer perguntas inteligentes - e não artificiais - para descobrir fatos novos, jamais por robôs, que só trabalham com notícia velha, ou seja, com o que já foi publicado. O mesmo vale para os repórteres-fotográficos: não dá para fazer flagrantes em home-office nem por email.

Continua após a publicidade

Opinião todo mundo tem. Mas, para poder elaborá-la, é preciso contar com informações novas e confiáveis, bem apuradas e checadas, a matéria-prima que só os repórteres profissionais de oficio podem fornecer em qualquer plataforma das velhas e das novas mídias.

Para isso, é preciso que velhos e novos repórteres estejam dispostos a sujar os sapatos, tomar sol e chuva, ir a lugares perigosos, ouvir muita gente, desconfiar da primeira versão ou do prato feito fornecido por "fontes" anônimas nem sempre confiáveis, não desistir na primeira dificuldade.

É impossível fazer uma boa reportagem só falando no celular e usando a internet, instrumentos-meio que se tornaram muletas do jornalismo preguiçoso. Nada substitui a presença do repórter no local dos fatos, seja numa guerra ou num simples acidente de trânsito, numa briga de vizinhos ou na crise política que pode derrubar um governo.

Por falar em guerra, conto sempre a história de um debate na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio, de que participei, uns 30 anos atrás, junto com o lendário repórter José Hamilton Ribeiro, aquele que perdeu uma perna no Vietnã. Perguntaram a ele se era difícil fazer reportagem com uma perna só, e o maior repórter brasileiro do século 20 respondeu:

"Não é, não. É melhor do que fazer com quatro..."

O tema do debate era "A reportagem está morrendo?". Muito tempo depois, fomos falar na PUC do Rio e o tema foi o mesmo.

Continua após a publicidade

Achamos engraçada a coincidência e brincamos com os estudantes: "Só vai morrer se vocês deixarem... Enquanto tiver repórteres curiosos, ela não morre. Nós continuamos vivos e fazendo reportagens. Daqui para a frente, depende de vocês".

Mais recentemente, Zé Hamilton foi aposentado pela Globo e eu virei comentarista no UOL por limitações físicas que me impedem de correr atrás da notícia.

Foi isso que tentei passar para os alunos da Cásper Libero: só vale a pena ser jornalista se for com paixão, com muita dedicação, sabendo que temos um compromisso social a cumprir para denunciar o que está errado e louvar o que bem merece, como diz a canção. Só assim podemos combater a praga das fake news que assolam as big techs e hoje têm mais poder do que muitos exércitos, ameaçando democracias pelo mundo afora.

Não existe jornalismo sem repórteres, por mais que a IA desenvolva robôs geniais, nem democracia sem imprensa livre - e vice-versa.

Vida que segue.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.