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Camilo Vannuchi

Trump, o dono da bola

Trump faz discurso golpista; em destaque, a indicação "Exit" - Carlos Barria/Reuters
Trump faz discurso golpista; em destaque, a indicação "Exit" Imagem: Carlos Barria/Reuters

Colunista do UOL

06/11/2020 10h52

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Quando eu era criança, tinha sempre um garoto mimado que era o dono da bola. Ou porque a única bola era a dele, ou porque era ele quem tinha a mais nova, a mais bonita, a mais leve, a mais padrão-Fifa-oficial-modelo-Copa-do-Mundo.

No final dos anos 1980, as bolas ainda eram feitas de couro animal, costuradas em 32 gomos (12 pentagonais e 20 hexagonais), e ficavam encharcadas em dias de chuva. Quem aparecia com a bola mais branquinha e redonda, devidamente balanceada, virava logo o capitão de um dos times, a quem cabia a tarefa de começar escolhendo os jogadores. Seguiam-se as escolhas dos dois "capitães", alternadamente, até que o mais perna-de-pau dos meninos acabava anexado a um dos elencos de forma compulsória. Esse cara, o que sobrava, muitas vezes era eu. Mas isso é detalhe.

O dono da bola era frequentemente adulado por dois ou três bajuladores vocacionados para a função. Para serem escolhidos pro time e para poderem pegar a bola emprestada depois da partida. Entre juras de amor eterno (e promessas de não reconhecer a vitória do adversário diante de uma possível derrota do dono da bola), essa legião de puxa-sacos quase sempre assumia a forma de um séquito de aspones que se adiantavam a dar tratos à bola, sem duplo sentido, para fazer parte da "diretoria" - quase sempre uma confraria de babacas que, na infância do playground e das escolas privadas, assumia a forma de "clube do bolinha". No caso, da bolinha.

O problema aparecia quando o time do dono da bola começava a perder, o que não era tão raro assim. Na vida real, dominar os meios de produção, sejam eles de capotão ou de poliuretano, não são garantia de bola na rede e vantagem no placar. Tampouco nas urnas.

A primeira reação do dono da bola normalmente era gritar com o time como quem espinafra os correligionários. Cadê a zaga? Cadê o meio-de-campo? Cadê o centroavante que não faz porra nenhuma? O goleiro é "frangueiro". O artilheiro "amarelou". A culpa, na cartilha dos donos da bola, era sempre dos outros.

Quando a coisa começava a desandar, o dono da bola não resistia:

— Marmelada! Estou sendo roubado!

Ninguém dizia que era mimimi porque ainda não haviam cunhado o termo. Numa sociedade ainda mais sexista e preconceituosa, chamávamos de "frescura": Deixa de viadagem!

Alguém mais sensato tentava explicar que não tinha ninguém roubando, até porque aquele tipo de pelada não comportava sequer juiz para xingar de ladrão. Não adiantava. Quando o dono da bola encasquetava com alguma coisa, não tinha conversa.

O fracasso iminente do time da casa - o time do dono da bola é sempre o time da casa - só fazia aumentar o nervosismo e a angústia do garoto mimizento.

— Parem o jogo! Parem o placar!

Pronto. Ficou nervosinho. Sem suprema corte nem tribunal da ONU, os jogadores envolvidos precisavam deliberar rapidamente, com ambos os times em campo, sobre os próximos passos. O cordão dos puxa-sacos buscava formas de defender o mestre sem parecer ainda mais ridículo do que já era. Outros apelavam para o triste argumento do cargo ocupado: "Vamos voltar, a bola é dele". Conhecedores da realpolitik, observadores atentos de um ambiente pseudodemocrático carente de freios e contrapesos, esses pressentiam de longe o cheiro de golpe. Sabiam que, mais cedo ou mais tarde, o dono da bola poderia fechar o Congresso Nacional e decretar o AI-5.

Da arquibancada, presidentes sul-americanos não hesitavam em manifestar apoio irrestrito. "Esse gol não deve ser contabilizado; não reconheceremos a vitória do time visitante".

Por fim, quando o placar indicava a derrota inevitável, quando já se mostrava matematicamente impossível virar o jogo, o dono da bola lançava mão do recurso que lhe era mais natural e característico:

— A bola é minha!

E metia a pelota debaixo do braço.