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Camilo Vannuchi

O ano 2 da pandemia e a cruzada das crianças

2021, o ano da vacina - Montagem: Camilo Vannuchi
2021, o ano da vacina Imagem: Montagem: Camilo Vannuchi

Colunista do UOL

31/12/2020 00h01

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— Vovó, cadê a máscara?

Foi a Bruna quem perguntou. Tem 6 anos a menina. Já incorporou o que muita gente grande teima em esquecer.

— Quando a gente vai poder tomar vacina?

Esse foi o Daniel, 9 anos. Ele sabe das coisas. Sua caderneta de vacinação parece a tabela periódica dos livros de química, cheia de quadradinhos carimbados e assinados. Ele sabe que é preciso um pouco mais do que uma injeção no braço para virar jacaré.

Dias atrás, aqui em casa, engatei uma conversa mole com os dois, dizendo que Papai Noel tinha pegado Covid e que, por causa disso, o Natal tinha sido cancelado. Ele é grupo de risco, acrescentei. Vai precisar ficar isolado, sem ver ninguém.

Para quê? Os dois pirralhos me explicaram que Papai Noel vivia com a Mamãe Noel e os duendes no Polo Norte, e que ninguém sabia o local exato da casa deles, de modo que estavam todos em quarentena desde sempre. Quem poderia ter levado o vírus até lá?

Depois me disseram que ele não precisaria aglomerar nem falar com ninguém. Bastaria viajar ao ar livre, no céu estrelado, nos trenós puxados pelas renas, e distribuir os presentes de máscara, sem chegar perto de ninguém - o que lhes pareceu um tanto óbvio, haja vista que Noel nunca se encontra com os moradores das casas que visita. Ele também usaria álcool-gel nas mãos, antes e depois de deixar os pacotes.

O assunto não se estendeu muito mais do que isso, mas durou o suficiente para escancarar algo muito revelador: é preciso aprender com a geração que vem aí.

Essa geração percebe que há algo de muito errado quando um presidente da República vem a público dizer que não é preciso ter pressa na busca por vacina, e que são os fabricantes de vacina que têm de vir atrás dele, e que tudo bem tirar férias e ir pescar com os amigos, todos sem máscara, enquanto o número de brasileiros mortos na pandemia bate os 200 mil.

Essa geração entende que não é hora de juntar 500 pessoas numa festa de réveillon, muito menos se você é um jogador de futebol famoso.

Essa geração não vê a hora de encontrar os colegas, convidar os amigos para jogar videogame, deixar de lado essa droga de máscara e retomar as aulas presenciais. Mas sabe que é mais importante estar vivo e em segurança para poder curtir os avós e os amigos por muitos e muitos anos.

Essa geração entende muito mais de empatia e de responsabilidade social do que aqueles que fazem pouco caso da pandemia, chamam a doença de gripezinha ou tratam os enfermos com desprezo, como se prevenção fosse coisa de "maricas" ou morrer fosse uma questão de escolha.

Crianças e adolescentes de todo o mundo: uni-vos. É chegada a hora de chamar certos adultos às falas. Dizer o que precisa ser dito. Repetir quantas vezes for preciso. Marchar em todas as cidades, em todas as vilas, em todos os cantos. Aprendendo e ensinando uma nova lição. Será a cruzada das crianças, não aquela, de 1212, rumo a Jerusalém, mas uma cruzada em nome da ciência, da informação, do conhecimento.

Malala Yousafzai tinha 11 anos quando começou a registrar num blog o cotidiano do vale do Suat, no Paquistão, e a forma como garotas como ela foram proibidas de frequentar a escola após a ocupação talibã. Levou três tiros e quase morreu aos 15.

Greta Thunberg tinha 15 anos quando decidiu matar aula e acampar em frente ao parlamento sueco para protestar contra o absoluto descaso dos adultos com o futuro do planeta. Segundo ela, o aquecimento global segue em índices tão alarmantes que é inacreditável que os políticos continuem falando em crescimento econômico em vez de colocar o clima como questão central e urgente.

Amika George tinha 17 anos quando se deu conta de que uma em cada dez jovens britânicas de 14 a 21 anos não tinha dinheiro para comprar absorventes. Liderou uma campanha nacional e conseguiu que o Legislativo de seu país aprovasse a distribuição gratuita de absorvente nas escolas e universidades.

Tudo isso foi ontem, na última década.

Tudo isso está acontecendo agora.

O ano 2 da pandemia começa sob o signo da superação. Certos problemas, certos obstáculos, precisam ser tirados da frente, extirpados feito berne, a começar pelo novo coronavírus. Ou vai ou racha.

Enquanto não vai nem racha, que seja o réveillon da máscara e do álcool-gel. A Bruna e o Daniel já entenderam. Eles também já entenderam que nenhuma vacina vai transformá-los em jacaré.

De minha parte, prefiro começar o ano com o pé esquerdo, precavido e esperançoso. Agradecer pela resistência de cada dia e enviar as melhores vibrações aos negacionistas que nos cercam. "Bobo com bobo, um dia algum estala e aprende: esperta", como bem assinalou Riobaldo Tatarana. Que venha 2021. Se for, vá na paz.